segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Dois Pequenos Passos na Areia Molhada

Dois Pequenos Passos na Areia Molhada

Há muitos anos um padre muito amigo meu me alertou que quando a gente só lê um tipo de livro corremos o risco de ficarmos bitolados e chatos. Esse é o risco que caras como eu correm quando só leem livros de história e/ou de religião. Nesses tempos em que boa parte do meu escasso tempo livre é dedicado a dormir, ler, escrever e a (retomar) gravar vídeos, esse risco de ficar monotemático é real. Sendo assim, entendo como um acaso feliz minha afilhada ter me emprestado Dois pequenos passos na areia molhada. Eu já havia lido livros sobre relatos pessoais de pessoas que atravessavam momentos ruins na vida, mas admito que este aqui supera os demais nos quesitos dramaticidade e identificação pessoal.

Julliand é a mãe da pequena Thais e de Gaspard. Bem casada com um marido jovem e amoroso, Loic, com um padrão de vida bom, parecia que nada poderia abalar a felicidade dessa família. Mas um dia de lazer na praia trouxe uma preocupação: a pequena caminha entortando os pés. Após exaustivos exames e consultas clínicas o diagnóstico de uma rara e fatal doença degenerativa.
O livro a partir daí descreve a longa e cansativa saga da família em busca de um tratamento para a menina e sua irmã - que nasce durante o tratamento e posteriormente é diagnosticada com a mesma doença.
O mérito de Julliand é nos colocar dentro do drama familiar em que repentinamente eles estão imersos. As descrições dos procedimentos médicos e cirúrgicos, o relacionamento com cuidadores, médicos, enfermeiros, parentes e amigos é realista ao extremo. Posso mensurar isso por mim mesmo, pois quando minha mãe fraturou a coluna dois anos atrás os mesmos dilemas, cansaços, raivas, medos e desalentos ameaçaram me derrubar. Aliás, Julliand e sua família souberam enfrentar o que os psiquiatras contemporâneos chamam de "Síndrome de Burnout", esse mal do homem moderno esmagado pela sua ânsia em mostrar produtividade além de suas capacidades humanas e psíquicas.
No caso de Julliand, após diversas "quedas e quebras" psíquicas, ela mesma admite que decide viver um dia de cada vez e não querer antecipar preocupações e problemas, ou seja, o ditado "não deixe para amanhã o que pode fazer hoje" somente vale para quem não tem que cuidar de parentes doentes. Para nós que extraímos forças de onde não tínhamos para acudir uma filha - ou a mãe idosa, como no meu caso! - vale uma nova frase: "deixe para amanhã o que NÃO PRECISA SER FEITO HOJE!". Acredite: isso ajudou Julliand, e a mim!
Outro ponto precioso do livro é a união familiar. Julliand é uma mulher forte, mas quando tudo parecia desabar o ombro sereno e forte de seu marido era um porto seguro onde ela repousava e buscava novas energias. Loic quase não fala no livro, mas sua presença é fundamental como o homem da casa, a rocha onde todos sabem que podem contar nas horas ruins. Aqui Julliand deixa um sutil recado a feministas e "homens feministos" de todos os quadrantes ao mostrar que homem de verdade é aquele que não abandona a companheira e a família nos momentos ruins, muito menos se impõe exibindo uma sexualidade vulgar, que na realidade não tem nada a ver.
Por fim, outro lembrete do livro é a questão da morte. Outro amigo meu certa vez me disse que a maior dor de um pai é enterrar o próprio filho, e Julliand nos lembra disso. A cada dia que passa o dia da morte e despedida da pequena Thais se aproximava e ela como mãe tentou se preparar para esse dia da melhor forma possível, mas como mãe não há forma de tornar essa vigília menos dolorosa. A aceitação da morte da filha por Julliand não é o conformismo pessimista dos existencialistas ateus franceses (Sartre, Camus) para quem a vida era uma náusea, uma inutilidade, "um comer e copular incessante" (A peste de Albert Camus) que termina no pessimismo. Para Julliand a morte tem um significado em nos sabermos criaturas espirituais citadas por um Deus que é o Supremo Bem.
Aliás, essas dimensão espiritual fica oculta no livro, mas está sutilmente presente. Julliand e o marido possuíam um "diretor espiritual", um padre amigo, mas ele é apenas citado rapidamente. Aqui creio que a autora optou por realizar uma omissão intencional e centrar toda a narrativa no drama enfrentado entre mãe e filhas doentes.
De qualquer modo, trata-se de um livro muito belo que merece ser lido por todos, absolutamente todos, pois a vida é o maior dom que recebemos de graça!