quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

MENSAGEM DE FINAL DE ANO

Santa Teresa de Ávila

Quero desejar a todos que me acompanham pelas redes sociais um santo ano novo, repleto de realizações, conquistas, sonhos alcançados, paz, prosperidade e alegria, mas também de derrotas. Derrotas que fazem parte do jogo, porque a vida será sempre um começar e recomeçar de olhos postos à plenitude, que é a vida eterna.

Não temos nesta terra pátria definitiva. Como bem lembrou Santa Teresa de Ávila, a vida é pousar mal à noite em uma péssima estalagem. Vivemos na terra, mas nossa pátria definitiva é o Céu, e para chegar ao Céu o que conta não é não cair, mas levantar-se sempre, uma vez e sempre levando a cruz às costas. A cruz do trabalho repetitivo, sem brilho e desprezado, mas grato aos olhos de Deus porque essa tarefa pequena e nada chamativa será usada por outros para que coisas maiores sejam construídas. 

Levantar uma vez e sempre, com o apoio de Deus e de Sua Mãe, Maria de Nazaré.

 

Abraços a todos

 

Edison Minami

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Introdução à História da Igreja

Este pequeno texto apenas quer retirar do pó do esquecimento algumas ideias que há milênios e séculos foram formuladas por homens mais sábios e inteligentes do que eu. Se Isaac Newton entendia que era um anão nos ombros de gigantes, eu acho que sou o papagaio nos ombros desses anões.

Quero situar o leitor na relação entre história e cristianismo. Já alerto que, se você entende a história como ação e o historiador/professor de história como um militante intelectual e político (seja de esquerda ou de direita) você vai achar o texto apenas bem intencionado e nada mais. Para mim, ao contrário do que Marx escreveu nas suas Teses contra Feuerbach: “Os filósofos anteriores interpretaram o mundo. Cabe agora transformá-lo”. O intelectual deve ser um engajado que queira transformar o mundo seguindo o programa marxista, do contrário será um utópico ou alienado. Penso diferentemente de Marx. Para mim, não cabe transformar o mundo se você primeiro não for capaz de interpretá-lo, muito menos entendê-lo.

Não formulo ideias novas, apenas as trago para o nosso tempo para que sejam novamente lidas, pensadas, meditadas e aplicadas, ou seja, quero ver a tradição vivida, e não recriada, reformada, restaurada, transportada para o tempo presente, como alguns movimentos contemporâneos dentro e fora do catolicismo almejam: recriar um passado dourado do cristianismo. Um pensador muito mais erudito do que eu, há um século disse o mesmo, mas de forma melhor:

“Um velho impulso em ação em um novo ambiente, diferente daquele ao qual estava originalmente adaptado, pode não ser meramente uma sobrevivência decadente, mas uma pedra fundamental na aquisição de novos poderes para a adoção de uma nova concepção de realidade. Portanto, há engrandecimento contínuo no campo da experiência, e graças à razão, o novo não substitui simplesmente o velho, mas é comparado e combinado com ele. A história da humanidade, e mais ainda da humanidade civilizada, demonstra um processo contínuo de integração que, apesar de poder dar a impressão de que opera irregularmente, nunca para” (DAWSON: 2017, p.146).

Transportar em bloco o passado ao presente só traria um mundo morto de volta. Algo parecido ocorre com a História da Igreja: os conhecimentos históricos aumentaram muito nas últimas décadas, e esse conhecimento acumulado não pode ser simplesmente descartado. Por outro lado, as análises antigas não devem ser ignoradas. Se elas envelheceram na questão do acúmulo de dados e informações, ainda são valiosas pelos seus métodos e visões de mundo, filosofias e teologias que as inspiraram.

 Alguns conceitos

Para poder dar seguimento a nossa discussão, vale definirmos algumas ideias importantes. Trabalhar conceitos nem sempre é uma tarefa fácil e agradável, mas necessária para não nos perdermos no significado das palavras. No campo da História da Igreja, assim como no da história em geral, esse cuidado preliminar é fundamental.

Igreja e igreja: Uso a expressão Igreja em maiúscula para determinar que estou tratando de uma instituição já consolidada pelo tempo, com um Cânon e um corpo doutrinal já cristalizados pelo uso e liturgia já estabelecida. O termo igreja em minúsculo será usado para referir-se ao local ou comunidade particular onde os cristãos se reúnem, sejam católicos, protestantes, reformados ou ortodoxos.

Quem fundou a Igreja?: O Fundador da Igreja foi Jesus Cristo. A História da Igreja Católica começa na Encarnação de Jesus no útero de Maria. Entre seus seguidores havia um grupo especial, que foi posteriormente identificado como “Apóstolos”. Todos escolhidos pelo seu fundador. Uma autora que longamente refletiu sobre o fato de Jesus ter escolhido homens entre seus mais diretos colaboradores, e o fato de apenas homens poderem ser sacerdotes, foi Edith Stein. Suas conferências mais interessantes sobre este assunto foram reunidas no livro A mulher. (Ed. EDUSC).

Quando falo de História da Igreja automaticamente refiro-me à instituição Igreja Católica Apostólica Romana, cujo “chefe” é o papa romano, sucessor do Apóstolo Pedro, martirizado no ano de 64 pelo Imperador Romano Nero, crucificado de cabeça para baixo, por se considerar indigno de morrer como seu Mestre, Jesus. Nessa Igreja os sucessores de Pedro Apóstolo perpetuaram-se ao longo de dois milênios, sendo o atual papa Francisco.

A História da Igreja Católica desenvolve-se a partir de três pressupostos

a)      A Igreja Católica é Jesus Cristo. Cristo comunica-se com cada um de seus membros;

b)      Os membros da Igreja Católica também se comunicam entre si através da comunhão dos santos;

c)      O membro da Igreja Católica entra em contato com Jesus Cristo através dos Sacramentos, da Sagrada Escritura e do Magistério da Igreja retamente ensinado pela Igreja docente. Por sua vez, a Igreja docente é formada pelo Papa, cardeais, bispos, e sacerdotes.

As “leis da história” não são anuladas e valem para a “história da Igreja”:

1)      A irrepetibilidade do fato histórico – o fato histórico é individual e irrepetível;

2)      O fato histórico é conhecido através de registros: documentos e monumentos. Após a fundação da Escola dos Annales em 1928, o conceito de documento e monumento ampliou-se muito, mas na essência é o mesmo: o vestígio do passado que, de forma deliberada ou não, chegou até o historiador no tempo atual;

3)      A ação humana é individual;

4)      A ação humana é livre. O homem possui livre-arbítrio, no sentido agostiniano do termo;

5)      O ser humano age em três esferas: o mundo, a sociedade onde ele vive, os grupos ele interage (escola, igreja, família, clube, amizades).

6)      O livre-arbítrio é o fator mais importante de todos. Aqui me baseio no livro Filosofia da história de Juan Cruz Cruz, em particular os capítulos sobre “Tradição” e “Revolução”.

 A História da Igreja é apologética?

Essa objeção é colocada vez ou outra por quem entende falar de religião como simplesmente fazer prosélitos, ou seja, proselitismo, no sentido negativo do termo. O historiador da Igreja precisa estar alerta a esse perigo. Entendo “Apologética” como todo o esforço em fazer conhecer a religião cristã. Nesse sentido todo aquele que passa a estudar e a ensinar sobre sua fé seria um apologista.

Um fiel sincero vai querer, sempre que a oportunidade aparecer, professar sua religião a outros. Ou seja: se o historiador for honesto com sua consciência, terá de admitir que pode ocorrer de ele usar seu conhecimento em benefício da religião. Uma saída para esse dilema é reconhecer que, mesmo sendo cristão, sua pesquisa procura se orientar sob critérios científicos. Todo aquele que almeje entender cada vez mais a história da sua religião deverá encarar os fatos de forma sóbria, sem querer esconder nada de vexatório ou repulsivo.

Os personagens da História da Igreja

Os personagens dessa “História”, resumidamente, são dois: Deus e os seres humanos. Deus é o “criador” de tudo, mas quer sempre contar com a nossa cooperação para realizar a obra de nossa salvação. Logo, precisamos estar em sintonia com Deus, estar a par de sua Vontade para conosco.

Jean Daniélou vê como inconformadas as pessoas que se aproximam de Deus pelos sacramentos. A vida espiritual, que Danielou denominou “vida sacramentaria”, vivida seriamente leva o fiel a conclusão de que o “mundo”, apesar de criado por Deus e portanto bom na sua origem, apresenta os sinais da rebelião humana: erros, assassinatos, crimes, o mau uso dos bens naturais dados por Deus, etc.:

“(...) a verdadeira resposta está, ao contrário, num Cristianismo vivido integralmente e em particular na vida sacramental – e assim os cristãos não viverão, de modo algum, refugiados no seu Cristianismo, mas estarão na vanguarda do verdadeiro movimento da História” (DANIÉLOU: 1964, p. 72).

Homens e mulheres, sejam de Deus ou não, vivem no mundo. O mundo é o campo onde Deus quer que eles permaneçam e vivam a santidade de vida:

“Por las múltiples fibras de su ser, el hombre está ligado a la comunidad histórica en la que está inserto, a la ciudad que le hace vivir, a la civilización que proporciona a su vida personal sus alimentos y su forma: sea o no consciente, participa en una Historia en la que juega un papel” (MARROU: 1968, p. 38).

Mas os cristãos são cidadãos de outra história:

“(...) cada persona humana tiene también que jugar su papel en otra Historia, la Historia espiritual, aquella según la cual se realiza el plan escogido por Dios para la salvación del mundo, Heilsgeschichte, la Historia Sagrada, la Historia que avanza misteriosamente hacia el último día, en el que encontrará al mismo tiempo su final y su culminación según el doble sentido de la palabra fin” (MARROU: 1968, p. 38-39).

O ser humano por excelência é aquele que atinge a santidade em vida, tendo superado as tendências e paixões. Não poderíamos conceber ações más e boas simultaneamente nas pessoas. Como Jacques Maritain havia sugerido no seu livro “Sobre a filosofia da história”:

“(...) a norma absolutamente geral e simples segundo a qual o joio e o trigo crescem juntos na história humana. Isto quer dizer que a marcha da História é um duplo e antagônico movimento de ascensão e de descenso. Em outras palavras, a História marcha num duplo e simultâneo progresso para o bem e para o mal. Trata-se, a meu ver, de uma lei de fundamental importância, se quisermos interpretar a história humana” (MARITAIN: 1962, p. 25).

De fato, há más inclinações, paixões e mesmo pecados na vida dos maiores santos, mas o santo é aquele que soube colecionar mais vitórias que derrotas nos momentos-chave de sua vida. Daniel-Rops - conhecido autor da História da Igreja em dez volumes, já publicados no Brasil - nos apresenta o cristão inconformado com o mundo que sonha em transformar o mundo através de uma revolução, a “Revolução da Cruz”. Como ele mesmo explicou no capítulo terceiro do primeiro volume da sua obra:

“O cristianismo não é em si uma ‘força revolucionária’, no sentido político-social que hoje se dá ao termo. Não é nem uma doutrina social nem uma doutrina política. Não é tampouco uma moral segundo os termos da filosofia antiga, isto é, a sua moral não é um fim em si, mas uma consequência, na vida mortal, de princípios que transcendem essa mesma vida. O cristianismo não é nada mais e nada menos do que a Revelação da Verdade eterna e total, por meio dos ensinamentos, do exemplo, da morte e da ressurreição de Jesus, Deus feito homem” (ROPS: 1988, p. 134).

Mas o cristão é sempre filho do seu tempo. O próprio Rops reconhecia a “eterna recaída dos cristãos” no aburguesamento, na sensualidade, no egoísmo, na ira etc. Rops nos alerta que não podemos, mesmo tendo em vista o estado atual do mundo, deixar de temperar nossa ação sem misericórdia.

O homem somente é livre quando opta por se mover e aceitar o plano divino. Guerras, assassinatos, desastres naturais e perseguições só ocorrem porque de uma forma misteriosa auxiliam no cumprimento da História Sagrada. Os acontecimentos nefastos originários da ação humana não são queridos por Deus, mas Ele os permite em nome da liberdade humana.

Mas a doutrina cristã nos lembra que a história do mundo terá um fim. Quando isso se dará ninguém sabe ao certo.

O cristão crê, por ser dogma de fé, que o mundo visível um dia terminará. Mas, quando e como se dará esse fim? Daniélou, ao refletir sobre a parábola dos jornaleiros (Mt, 20)[R1] [EM2] , teceu algumas conjecturas que esclarecem um pouco sobre “os últimos momentos do mundo”. Colocando as civilizações humanas no lugar dos operários da vinha, ele comentou:

“A Parusia não poderá vir senão quando todas as grandes civilizações forem evangelizadas e se tenham realizado no Cristianismo. Nós não somos dela senão ainda a sexta hora [o amanhecer de acordo com a contagem judaica do tempo usada na época de Jesus]. Na praça os operários esperam ainda; para eles o contrato de trabalho, o apelo à aliança não virá senão na hora nona ou na décima-primeira hora. A cada um o mesmo salário é prometido, a mesma graça. Mas ela é dada em tempos sucessivos. E esta economia é o próprio mistério do plano de Deus, cujo segredo Ele se reserva zelosamente: Aut non licet mihi quod volo facere? [Não posso fazer dos meus bens o que quero? (Mt. 20, 15)] Quais serão os operários da nona hora? Na vinha da Igreja que novo cacho vai amadurecer? Podemos somente contemplar com admiração o milagre do plano de Deus no seu misterioso crescimento. Será a China que dará ao mundo a revelação de uma nova idade do Cristianismo e lhe trará os frutos da santidade? Ou será a civilização negra cujo gênio tão profundamente religioso renovará na Igreja o sentido, o mistério, a inteligência da liturgia, o espírito de infância? As crises econômicas passarão, os grandes impérios cansar-se-ão de rivalizar pelo domínio da terra. Mas a Igreja continuará sua marcha inelutável em direção da plenitude e da edificação do corpo incorruptível de Cristo” (DANIÉLOU: 1964, p. 163).

Daniélou nos apresenta o gigantesco panorama da História da Igreja em escala universal: a civilização de origem Greco-romana ao longo de milhares e milhares de anos amadureceu a fim de formar uma civilização cristã de raiz ocidental-caucasiana, para mais tarde ver nascer civilizações cristãs de raiz africana, asiática, e assim por diante.

Para Daniélou, o ocidente cristão em formação e amadurecimento nos últimos 2000 anos é apenas o começo do processo de evangelização. Outras civilizações ainda surgirão e amadurecerão, para enfim, aceitarem a influência cristã num processo de milhares e milhares de anos. No presente, o ocidente de raiz cristã está em plena decadência. Isso é visível a todos. Seguindo o exemplo usado por Daniélou, ainda estamos ao fim da hora sexta, as seis da manhã, ou seja, no amanhecer dessa história gigantesca.

Nenhuma cultura deve subordinar a mensagem do Evangelho. As culturas nascem, crescem, amadurecem e, se deixarmos, podem morrer. Mas a mensagem evangélica adapta-se às culturas sem perder sua identidade central: a mensagem de Jesus Cristo. Caso a leitura de Daniélou esteja correta, ainda levaremos dezenas de milhares de anos para chegarmos ao tempo da segunda vinda do Cristo à terra. Daniélou nos alerta que o lapso até a consumação dos tempos será muito longo, sendo impossível determinar com exatidão o momento do fim.

O filósofo, o teólogo da história e o historiador da Igreja católica começam a perceber que há muitas variáveis, muitas metodologias e abordagens teóricas a serem utilizadas para se determinar o momento e o lugar dos últimos acontecimentos do mundo. Um autor mais recente teceu considerações parecidas: “João Paulo II disse, com razão, que estamos apenas no começo da evangelização” (SARAH: 2019, p.34).

Aqui reside uma das maiores “decepções” do historiador da Igreja: não existem instrumentais teóricos capazes de prever a chegada do “Juízo final”. Mesmo que o amadurecimento das civilizações seja um indício seguro, ele é muito fluido e discutível para ser preciso. Para Daniélou, a história da Igreja Católica segue um ritmo similar ao da história econômica de longa duração de Fernand Braudel, para quem a longuíssima duração remete a uma duração do tempo que quase se confunde com a evolução da história natural.

[R3] A história da Igreja não é uma aventura isenta de dores e sofrimentos. Muitas vezes a dor, a morte, as guerras, pestes e derrotas fazem parte dessa história, escrita não raras vezes com sangue (MARROU: 1968, p. 86). O mesmo Marrou apontou que o Mal no mundo será cada vez mais visível, e o bem invisível:

“(...) el triunfo seguro del Bien quizá no sea jamás perceptible a la observación empírica, mientras que la presencia eficaz del Mal dejará siempre sentir su presión y su poder. En la víspera del instante supremo en que la historia va a detener-se, una vez llegada a su término, cuando el Cuerpo de Cristo haya alcanzado su perfecto crecimiento, puede ser que, en ese momento, a los ojos carnales, del historiador de las instituciones y de las técnicas y la mirada de los testigos, la tierra aparezca como un campo de ruinas y esa época como un tiempo de fracasos” (MARROU: 1968, p. 98).

O “crescimento no bem” será cada vez mais discreto, porém presente. Por outro lado, perante a presença do mal onipresente e vencedor, o bem parecerá desaparecido, quando na realidade o que estará acontecendo será justamente o contrário, ou seja: um dos sinais visíveis da iminente Parusia será, aos olhos da opinião pública, a aparente derrota de Cristo e de sua Igreja.

Mesmo entre diferentes grupos dentro da Igreja ocorrerão lutas. O pecado obscurecerá o entendimento dos cristãos e eles lutarão entre si. De fora, o espetáculo será deprimente, verdadeira “contradição dos bons” (S. Josemaría Escrivá):

“[Santo Agostinho] añade que, item pugnant inter se mali et boni, también los malos y los buenos andan a la greña. Ese es, por lo demás, el régimen normal de la historia: Cristo no ha prometido a sus seguidores el triunfo para un mañana terrestre, sino la persecución y el martirio. Tampoco con esa constatación se aquieta San Agustín, sino que pasa a preguntarse si los buenos pueden combatirse entre ellos: no lo harían, no podrían hacerlo, dice, si todos fuesen perfectos, pero, lejos de serlo, están, en el mejor de los casos, en vías de progreso, en marcha hacia la perfección, por eso se combate entre ellos, atacando cada uno, en buena consciencia, en nombre del bien en el que creen, al mal demasiado real que ven en el contrario” (MARROU: 1968, p. 127).

Além do obscurecimento do entendimento é preciso apontar o livre-arbítrio, a liberdade de escolha que pode fazer-nos escolher mal em vez de bem, mesmo pensando agir de forma bem intencionada. Apesar de tantas misérias, Deus atua na História da Igreja sempre de forma positiva, fazendo com que as escolhas e a ação humanas concordem com seu “plano”. Marrou fez uma de suas afirmações mais belas ao dizer que a santidade é o mais visível fruto da história da Igreja:

“Todo el tiempo que transcurre entre las dos Parusías, los dos advenimientos del Señor, es el tiempo durante el cual Dios hace madurar esos frutos de la historia que son los santos” (MARROU: 1968, p. 155-156).

Ou seja: o surgimento dos santos é o indício mais visível e sensível de que a história da Igreja avança rumo ao seu fim.

O documento por excelência para reflexão da História da Igreja é o Livro do Apocalipse

O Apocalipse foi escrito por São João Apóstolo. Segundo a Tradição o livro do Apocalipse teria sido escrito por volta dos anos 90-100 da era cristã. O livro procura apresentar o panorama da história humana sob o olhar divino. Nele há uma luta titânica entre o poder das trevas e o poder da luz, entre Deus e o Demônio, o Príncipe deste mundo. O Demônio, que apesar de seus imensos poderes é criatura rebelada contra seu Criador, quer destruir a mais querida obra divina: o ser humano:

“O Apocalipse apresenta-se como uma profecia repleta de símbolos. Dado o seu poder evocativo, este tem o condão de exprimir uma realidade que transcende a linguagem e a experiência correntes, permitindo elevar-nos à contemplação do mistério de Cristo vitorioso, Senhor do tempo e da História. Estamos perante uma Teologia da História em linguagem figurada” (MORUJÃO: 2010, p. 13).

Eis a chave hermenêutica da história humana: passando pelas crises, guerras, tormentas e mortes, a Igreja personificada a cada geração nos seus fiéis está em pleno combate contra as forças demoníacas. A luta entre os “filhos da luz e os filhos das trevas” ocorre em dois planos da existência: o humano e o divino.

O homem-cristão, imerso no tempo, ainda seria capaz de exercer seu “livre arbítrio”?

De tudo o que foi dito até o momento, essa objeção pode aparecer: o homem, diante do Deus todo poderoso, ainda é livre, ou é apenas um brinquedo nas mãos divinas? Cormac Burke resolve esse aparente dilema nos lembrando que a verdadeira liberdade exercita-se na livre escolha do bem

“O caminho que leva à liberdade é um caminho de montanha, e quem quiser percorrê-lo terá que subir a encosta da justiça, do serviço, da humildade, da castidade, do amor...”. “Quanto mais um homem lutar por prosseguir nesse caminho, tanto mais livre se fará. E quanto mais livre for, tanto mais senhor de si mesmo será, e tanto maiores o domínio e o controle plenos que terá sobre todas as suas faculdades. Terá a liberdade de manter as faculdades e os instintos inferiores adequada e dinamicamente subordinados às faculdades superiores – a sensualidade ao amor, a ira à justiça, etc. – e conseguirá também que as faculdades superiores se relacionem gozosamente com os valores superiores: o amor com a bondade, a inteligência com a verdade. É somente ao longo deste caminho que o nosso esforço se vê recompensado pelo encontro com a liberdade” (BURKE: 1989, p. 27).

Só um homem e uma mulher que livremente optam pelo bem são genuinamente livres. Porque a partir do momento em que optamos pelo mal perdemos nossa liberdade, já que não podemos mais optar pelo bem. Ou seja: já não somos mais livres!

Em resumo: quem faz a História da Igreja? Deus e o homem. O homem escreve a história, mas Deus é o corretor de texto, editor e dono da editora.

As diversas Teologias da História

Teologias ou sistemas de pensamento que nos oferecem saídas diferentes para conhecermos e cumprirmos a Vontade de Deus, ou para ignorarmos essas questões, são uma constante na história humana. Mesmo pessoas bem intencionadas podem, mal orientadas ou mal formadas, desvirtuar pessoas ou grupos inteiros. Se o homem se afasta de Deus, quer queira quer não, acaba decaindo e adotando falsas “teologias da história”:

“(...) fica sugerida na idolatria um sistema religioso em oposição aberta ao cristianismo. Esta Besta é ícone de um poder que rejeita Cristo e a sua Igreja, impondo falsos cultos e uma ideologia com sucedâneos das mais variadas formas ao longo dos tempos: sincretismo religioso, laicismo, relativismo, ateísmo militante e sectário, materialismo dialético e prático, com as más consequências que acarreta” (MORUJÃO: 2010, p. 105).

Já as ciências sociais entendem o fundamentalismo religioso como ideologia. E nesse ângulo do problema um autor que discorreu extensamente sobre o assunto foi o professor Peter Demant, titular do DH-FFLCH-USP e atualmente ocupante da cadeira de História da Ásia. A leitura do seu livro O mundo muçulmano foi de grande utilidade, servindo de contraponto para entendermos o impacto da modernidade no cristianismo, e pelo fato dele discorrer longamente sobre o fundamentalismo religioso como ideologia. Partindo do choque do mundo muçulmano com a modernidade, Demant entende que o fundamentalismo nasce como reação ao laicismo, fruto da modernidade:

“O conceito de ideologia está entre os mais controvertidos das ciências sociais. Aplicamo-lo aqui no sentido original, iluminista-racionalista: o ‘logos das ideias’, ou seja, uma ‘ciência’ que, partindo de princípios universais abstratos, é aplicada para melhorar a sociedade. Não importa que os próprios pontos de partida – a crença em Deus e Seu profeta, a literalidade do Alcorão etc. – sejam em si não racionais (ou pelo menos não substanciáveis): isto vale para muitas outras ideologias que em seu tempo se apresentaram como panaceia para os males da humanidade, tais como os ideais liberais da Revolução Francesa, o comunismo, o fascismo entre outros”.

“No entanto, uma vez aceitos os princípios básicos da ideologia, todo o resto se deduz pela razão, de maneira quase cientifica. Segue-se daí uma interpretação coerente do mundo e de suas imperfeições; um programa não menos lógico para remediar os defeitos, mediante uma mudança no mundo real; e a insistência para que aqueles que aceitam a análise se engajem numa ampla luta pela realização desse programa. (...) essa luta pede um compromisso total e irrevogável que transforma o crente [muçulmano] num militante. A prioridade que esta luta exige está em contradição com as demandas e os prazeres da vida cotidiana e exige que o verdadeiro idealista deixe tudo para abraçar seu compromisso político-religioso. O entusiasmo pode ir até a morte, sacrifício último em prol de um fim transcendente, cuja realização, porém, já está certa. Na verdade, o fundamentalismo muçulmano, como outras ideologias, inclui uma visão determinista da história enquanto combate entre o Bem e o Mal, onde o indivíduo é chamado a se tornar um soldado num exército cuja vitória é certa de antemão: seu papel então se reduz à aceleração de um processo (meta-)historicamente inevitável”.

“Mas nessa submissão a um processo ‘automático’ (ou que pelo menos independe de sua vontade individual), esconde-se também uma recompensa psicológica: a de pertencer ou se juntar a uma elite de escolhidos privilegiados por sua tarefa histórica – o povo eleito, os intelectuais, o proletariado -, o partido de Deus”. (...).

“É característico das ideologias do mundo moderno ambicionar o poder do Estado, considerado a alavanca para a realização do paraíso na Terra. Guerras – religiosas, ideológicas, sociais, etc. – são imprescindíveis, e uma grande crise com muito sofrimento precederá a salvação final (o modelo original deste tipo de pensamento é o messianismo judaico)”. (...).

“(...) os mais extremos irão até glorificar a violência e a morte”. (...).

“(...) se efetua a ligação entre o externo e o interno: a nova sociedade ‘pura’, idealizada e imposta pela força existe para produzir o novo homem – sempre imbuído de sua missão trans histórica, totalmente dedicado ao ideal e, portanto, virtuoso e puro”.

“É nítido como um tal programa pode (e para progredir, precisa) gerar fanatismo e – se tiver êxito – conduzirá a um experimento de engenharia social totalitário e sem controles democráticos. Modelo comum entre fundamentalistas muçulmanos e ideólogos de outras tendências” (DEMANT: 2015, p. 302-304).

Entendemos assim que os sistemas ideológicos tanto de direita quanto de esquerda apresentam-se como “falsas teologias da história”, assim como muitas leituras radicais da religiosidade cristã e, no caso específico estudado pelo prof. Demant – do islamismo. A História da Igreja não se acomodaria ao socialismo e aos seus diversos desdobramentos, por seguir uma ordenação sobrenatural, que vista sob o prisma do acontecer humano – ou seria melhor dizer, mundano? – não aparenta ter a menor lógica.

Em resumo: toda e qualquer leitura, oriunda do cristianismo ou de qualquer outro sistema ideológico, que proponha a instalação no tempo da um estado permanente de felicidade e paz, não é verdadeira história da Igreja. A Parusia, o fim da história da Igreja, ocorrerá fora do tempo, quando o número dos eleitos para o Céu se completar.

A “História da Igreja” não é história pura e simplesmente?

A História da Igreja é uma disciplina peculiar que em diversos aspectos descola-se da história profana. A história seria toda a ação humana, pura e simplesmente. Já a História da Igreja envolveria os cristãos em Estado de Graça Santificante, ou seja, que não possuem na consciência pecados mortais ou veniais deliberados, e deste modo Deus pode agir através da colaboração deles. Nas palavras de Jean Daniélou:

“A história sagrada não é somente aquela que constitui os dois testamentos. Ela tem continuação em nosso meio. Nós vivemos em plena história sagrada. Deus continua a realizar suas grandes obras, que são as da conversão, da santificação das almas” (DANIÉLOU: 1964, p. 14. O grifo é meu).

Mais recentemente o historiador conservador italiano Roberto Mattei acusou Daniélou de heterodoxia por interpretar passagens como essa de Sobre o mistério da história no sentido de que Danielou estaria defendendo que a Revelação de Cristo não teria se encerrado com a morte dos Apóstolos no séc. I, mas continuaria pelos milênios afora até os dias atuais, uma leitura que, como podemos ver pelo fragmento citado acima, não cabe. O que Danielou quis dizer é que a ação de Deus continua no tempo, mas que a Revelação do Cristo se completou com o ensino dos Apóstolos. As grandes realizações divinas, as efusões de Graças pelo Espírito Santo continuam a ocorrer entre os cristãos de todos os tempos a partir de Pentecostes. Negar isso seria negar a própria natureza da Igreja Católica: uma Instituição humana com instrumentos humanos que querem cumprir um mandato divino. Sob a inspiração do Espírito Santo os cristãos livremente escolhem agir de acordo com o plano de Deus. Essa constatação permite que outro autor, Joseph Lortz, vá mais longe e afirme que “a história da Igreja é teologia”, que Deus se “rebaixa” ao nível dos seres humanos, ou em suas palavras:

“(…) la peculiaridad histórico-eclesiástica, a diferencia de la historia profana del pensamiento, no solo se debe a que la Iglesia, en cuanto continuación mística de la encarnación del Logos, es algo divino, sino a que ella misma representa la historia de lo divino en la tierra. Mediante la encarnación, Dios ha querido participar en la historia humana, Por eso, también la historia de la iglesia se halla bajo la dura y a veces desconcertante ley de las tensiones e imperfecciones, que en ella ejercen un influjo mucho más peligroso que en una comunidad meramente natural” (LORTZ: 1965, p. 05).

O historiador de ofício se vê diante de um mundo estranho e novo: os fatos históricos são lidos em quatro dimensões: tempo, materialidade (documentos e monumentos), as pessoas e a ação de Deus. Religião e teologia têm dimensões próprias, instrumentais próprios para analisar e compreender o mundo. A cultura influencia a religião e a Igreja? De fato, sim. Mas a religião e a Igreja não são simples “criaturas” da cultura. Cultura e religião influenciam uma a outra numa via de mão dupla: a cultura influencia a religião e a religião influencia a cultura. Sem levarmos esses fatores todos em consideração a História da Igreja se vê reduzida à sociologia da religião, filosofia da religião ou a história institucional. O historiador da cultura cristã Christopher Dawson definiu bem essa relação entre religião e cultura:

“(...) uma cultura não é nem um processo físico nem uma construção ideal. É um todo vivo com suas raízes no solo e na vida instintiva simples do pastor, do pescador e do fazendeiro até seu florescimento nas realizações mais elevadas do artista e do filósofo, da mesma forma que o indivíduo combina, na unidade substancial de sua personalidade, a vida animal de nutrição e de reprodução com as atividades mais elevadas da razão e do intelecto. É impossível desconsiderar a importância de um elemento material e não racional na história. Toda cultura ancora-se no ambiente geográfico em que se assenta e em sua herança racial, que condiciona suas atividades mais elevadas. Mudança de cultura não é simplesmente uma mudança de pensamento, é acima de tudo uma mudança de vida. (...). A tentativa idealista de ver na história apenas a ‘glória da ideia espelhando-se na história do mundo’ [Hegel, Filosofia da História], não faz melhor que o otimismo do dr. Pangloss, e traz à tona, à maneira da dialética hegeliana, aquela opinião oposta e complementar de Cândido, que considera a história como um rebuliço irracional de crueldade e de destruição em que a força bruta e o acaso cego são os únicos determinantes”.

“Entretanto, ainda que a cultura seja essencialmente condicionada por fatores materiais, eles não são tudo. Uma cultura recebe sua forma de um elemento racional ou espiritual que transcende os limites das condições raciais e geográficas. Religião e ciência não morrem com a cultura da qual participam. São transmitidas de pessoa para pessoa e funcionam como uma força criativa na formação de novos organismos culturais” (DAWSON: 2012, p. 96-97).

História eclesiástica, história da Igreja, teologia da história, tradição

A história é uma disciplina que trata da narração de fatos que merecem ser salvos do esquecimento, ou seja, a história é uma forma de transmissão de tradição. O historiador é um narrador que se utiliza da prosa para salvar do esquecimento acontecimentos previamente interpretados através de métodos de estudos históricos. Mas é fundamental não nos esquecermos de que para o historiador existe a objetividade histórica, fruto do paciente acúmulo de pesquisas que com o tempo vão sanando dúvidas e debates historiográficos.

O surgimento do cristianismo complicou mais as coisas. A visão circular do mundo antigo, apoiada no mito do eterno retorno, entendia que o mundo havia atingido um equilíbrio que nada poderia romper. Não haveria o conceito de história como o conhecemos modernamente, como Mircea Eliade resumiu na sua obra mais emblemática:

“Um sacrifício, por exemplo, não só reproduz exatamente o sacrifício inicial revelado por um deus ab origine, no princípio dos tempos, mas também se situa nesse mesmo momento mítico primordial; quer dizer, todo o sacrifício repete o sacrifício inicial e coincide com ele. Todos os sacrifícios são feitos no mesmo instante mítico do princípio; o tempo profano e a duração são suspensos pelo paradoxo do rito. E o mesmo se passa com todas as repetições, ou seja, com todas as imitações dos arquétipos; através dessa imitação, o homem é projetado numa época mítica em que os arquétipos foram pela primeira vez revelados. Surge-nos então um segundo aspecto da ontologia primitiva: a repetição de gestos paradigmáticos confere realidade a um ato (ou objeto) e é nessa medida que há uma abolição implícita do tempo profano, da duração, da ‘história’; aquele que reproduz o gesto exemplar é transportado assim para a época mítica em que esse gesto exemplar foi revelado”.

“A abolição do tempo profano e a projeção do homem no tempo mítico só se produzem em intervalos essenciais, ou seja, naqueles em que o homem é verdadeiramente ele próprio: no momento dos rituais ou dos atos importantes (alimentação, geração, cerimônias, caça, pesca, guerra, trabalho, etc.). O resto da sua vida passa-se no tempo profano e desprovido de significado: no ‘devir’” (ELIADE: p. 50).

O cristianismo, e antes dele o judaísmo antigo, entendiam que o mundo tinha um princípio e um fim, ou seja: havia um elemento complicador, o tempo, criado por Deus junto com as criaturas com a função de medir seu desgaste. No judaico-cristianismo os fatos históricos são irrepetíveis. Não há uma circularidade que permita a repetição dos fatos como no paganismo antigo. Os fatos históricos se intercalam através da passagem do tempo, em uma linearidade. Podemos entender que nasce assim o conceito de história como o entendemos, tudo tem um começo, meio e fim. A segunda vinda de Cristo marcará o fim da história humana que vai se consumar definitivamente fora do tempo, no juízo final.

O cristianismo entende que na plenitude dos tempos o próprio Deus encarnou-se, viveu e morreu entre nós para enfim ressuscitar da morte e ascender aos Céus, prometendo voltar um dia. Jesus Cristo, como seus discípulos o chamaram, inaugurou a história como a conhecemos. O mundo tem uma existência linear no tempo, mas ganhou uma finalidade que vai ser atingida fora do tempo, no Apocalipse e na sua sequência, a Parusia.

O mundo como conhecemos é maior do que imaginávamos, pois além do universo captado pelos sentidos (pessoas, animais e plantas que o habitam, além dos elementos químicos, os astros no universo etc.), há seres espirituais que, antes da criação do mundo, já lutavam entre si. De um lado os anjos bons e Deus; do outro os anjos maus e Lúcifer, o mais perfeito dos seres celestiais criados por Deus. Essa batalha espiritual foi brilhantemente situada na história por Santo Agostinho de Hipona na sua obra A cidade de Deus (De Civitate Dei) e é até hoje o ponto de partida da reflexão de inúmeros pensadores e historiadores católicos:

“Em uma das suas obras-primas, Santo Agostinho examinou a Comunhão dos Santos a partir de uma única metáfora: a Cidade de Deus. Nesse lugar, a população, segundo ele, é formada tanto pelas almas que já estão no Paraíso quanto pelas pessoas que estão na Terra. A parte terrena da sua população, no entanto, não inclui apenas aqueles que fazem parte de uma paróquia. Santo Agostinho defendia que muitos daqueles que não professavam a fé cristã eram inconscientemente cristãos. Por outro lado – dizia ele -, havia também aqueles que eram cristãos de carteirinha e que, no entanto, viviam pelas leis de outra cidade: a Cidade dos Homens. Neste mundo, no entanto, as duas cidades estão misturadas, como o joio e o trigo na parábola de Jesus sobre o campo, ou os peixes e o lixo em sua parábola sobre a rede”.

“Enquanto estamos na terra, não podemos saber a qual direção outro indivíduo tende. O agnóstico pode estar lutando em busca da sua santidade; por sua vez, o católico assíduo que jamais deixa de ir à Missa aos domingos pode voltar para casa toda semana e se entregar a vícios secretos por trás de uma porta fechada. Só Deus conhece o censo da Comunhão dos Santos. Ele vê aquilo que nós não vemos”.

“Nunca se sabe também como uma determinada história vai terminar. O atestado do amor verdadeiro se dá na provação, no teste, na tentação, e às vezes o resultado é inesperado” (HAHN: 2018, p.51-52).

Mas a Cidade de Deus não é exatamente uma obra de história da Igreja. Apesar de Agostinho tratar longamente do desenvolvimento da ação divina no tempo, sua intenção era mais comprovar uma tese do que propriamente narrar essa ação. Ela hoje seria entendida mais como uma obra de teoria da história da Igreja do que propriamente uma obra de história.

Nem mesmo a História eclesiástica de Eusébio de Cesareia é exatamente uma obra de história da Igreja. Escrita por um dos padres-conciliares participantes do Concílio de Niceia (324), a preocupação de Eusébio era demonstrar a perenidade da Igreja docente (padres, bispos e papas) através dos séculos desde Pentecostes, ou seja, provar que a sucessão apostólica remontava aos Apóstolos e a Cristo. Centrada desse modo nos clérigos, a obra desde sua concepção descrevia apenas uma parte do povo de Deus, a que tem o múnus de ensinar e interpretar corretamente o magistério da Igreja, a Tradição e as Escrituras Sagradas, os ungidos do Senhor Jesus em uma linguagem evangélica.

Cientes dos problemas hermenêuticos que estamos colocando, seria prudente tentarmos, mesmo que de maneira preliminar, definir alguns termos.

História eclesiástica: seria a história da Igreja docente, parte da Igreja de Cristo: padres, bispos, cardeais e o papa. A história de todos aqueles que receberam do Espírito Santo o múnus de ensinar e interpretar retamente a doutrina cristã.

Essa missão não foi fruto de um desenvolvimento sociológico ou corporativo da Igreja nascente, nem um furor imperialista dos cristãos que queriam “subjugar espiritualmente” outros povos, mas um mandamento divino como podemos ler na passagem a seguir:

“Foi-me dado todo o poder no céu e na terra: ide, pois, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo” (Mateus 28, 18-20).

A Igreja Católica foi fundada pelo próprio Deus encarnado. Jesus não era “tipo” Deus ou algo ou alguém que lembrava Deus, mas Deus em pessoa. Essa é a crença dos cristãos, essa é a crença dos católicos romanos. E eles não falharão na missão de ensinar a todos os povos a doutrina do Cristo até o fim dos tempos. De uma maneira misteriosa e incompreensível ao espírito humano a ação ou omissão dos fiéis não impedirá que seja atingido o número dos eleitos, o número dos que merecerão adentrar a glória celeste, e nem impedir que seja atingida a contagem dos desgraçados que passarão a eternidade no inferno.

Esse múnus de ensinar e interpretar a doutrina tem sido contestado devido ao acesso dos fiéis a informações adquiridas pelas redes sociais. Esquecem esses católicos radicais ou radtrads (radicais tradicionalistas) que o múnus de ensinar foi prometido pelo próprio Deus Filho Jesus Cristo aos seus Apóstolos. A tradição apostólica comprova essa “linha de sucessão” ao longo dos séculos. Entre inúmeras testemunhas, seleciono uma das mais próximas ao “tempo dos Apóstolos”, São Clemente Romano, terceiro papa na linha de sucessão de São Pedro Apóstolo na diocese de Roma:

“Também os nossos Apóstolos sabiam, por Nosso Senhor Jesus Cristo, que haveria contestações a respeito da dignidade episcopal. Por tal motivo e como tivessem perfeito conhecimento do porvir, estabeleceram os acima mencionados e deram, além disso, instruções no sentido de que, após a morte deles outros homens comprovados lhes sucedessem em seu ministério. Os que assim foram instituídos por eles, ou mais tarde por outros homens iminentes com a aprovação de toda a Igreja, e serviram de modo irrepreensível ao rebanho de Cristo com humildade, pacífica e abnegadamente, recebendo por longo tempo e da parte de todos o testemunho favorável, não é justo em nossa opinião que esses sejam depostos de seu ministério” (SÃO CLEMENTE DE ROMA, PAPA. Carta aos Coríntios 42, 1-3. Apud: AQUINO: 2000, p. 44-45).

A história eclesiástica está interessada justamente nessa sucessão apostólica, em entendê-la e comprová-la. Em tempos mais recentes vimos uma renovação no interesse pela história eclesiástica em estudos de caráter histórico e sociológico surgidos na academia, ou seja, pesquisas científicas sem preocupação espiritual, mas com a intenção de compreender a dinâmica da Igreja docente como corpo jurídico e institucional. Duas obras marcaram no Brasil essa retomada laica dos estudos de história eclesiástica: os livros dos professores Augustin Wernet e Sérgio Miceli. A partir dessas obras vieram inúmeras outras, artigos científicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado que procuraram mapear a reestruturação institucional da Igreja Católica no Brasil.

A compreensão institucional da Igreja já está bem encaminhada. Mas o entendimento da Igreja como meio de levar a mensagem cristã a todos os povos – um empreendimento sobrenatural, nunca é demais lembrar – precisa ser retomada.

História da Igreja e Teologia da história: Essas duas expressões são mais problemáticas porque até onde pude apurar não há um consenso no uso delas. A história da Igreja deve ser diferenciada da história das religiões, da sociologia e antropologia da religião, como também da antropologia histórica, embora todas essas disciplinas sejam limítrofes à História da Igreja. Alguns autores falaram também de uma história religiosa (Jaume Aurell na sua obra A escrita da história), complicando ainda mais a nossa busca pela definição terminológica. Para ficarmos em apenas dois exemplos, tanto a coleção de Biblioteca de Iniciação Teológica da Editora DIEL quanto o organograma da Universidade de Navarra[1] classificam a disciplina História da Igreja como teologia e disciplina teológica.

Mas, para ficarmos em uma definição, poderíamos dizer que a história da Igreja é a história da instituição Igreja, entendida como o conjunto de todos os seus fiéis, batizados ou não, cristãos ou não, narrada e analisada sob um viés teológico e espiritual, ou seja: História da Igreja e Teologia da História para fins práticos são a mesma coisa.

Jaume Aurell não entendem a história da Igreja como teologia, mas simplesmente a classifica como história religiosa, sendo o historiador religioso por definição Henri Irenée-Marrou. Pessoalmente não concordo com essa rotulação de Aurell. Para mim, o objeto religião tem um múnus próprio que merece uma abordagem toda especial através de um instrumental teórico adaptado a ele, uma teologia, em último caso:

“(...) o que quer que pensemos a respeito da verdade da doutrina católica ou dos valores espirituais católicos, sem dúvida, o catolicismo representa uma porção considerável da experiência espiritual e histórica. Se ignorarmos isso, não poderemos nos considerar pessoas bem instruídas”.

“Se, no entanto, pretendermos explorar esse continente desconhecido, precisaremos da ajuda de uma série de disciplinas diferentes. Uma abordagem puramente teológica não é o bastante, embora essa é a que requererá o maior esforço de compreensão. Devemos também estudá-lo como historiadores, já que de todas as espécies de cristianismo, o catolicismo é uma das formas mais profundamente comprometidas com a história; por fim e antes de mais nada, devemos estudá-lo como pesquisadores da cultura, buscando compreender um modo de vida religioso nada familiar, pois, quando protestantes e católicos se encontram, a primeira coisa que os impressiona não é o conjunto diferente de dogmas teológicos, mas o padrão diferente da vida religiosa” (DAWSON: 2014, p. 95).

O estudo do fenômeno religioso é multidisciplinar e exige o cruzamento de uma gama enorme de informações para compreendê-lo, daí a dificuldade dos historiadores em estudá-lo adequadamente. As nossas escolhas morais impactam diretamente na nossa visão de mundo e na nossa compreensão dos objetos que escolhemos para pesquisar. Estudar o fenômeno religioso não é fácil.

Conclusões

Escrevo estas linhas breves em meio a uma das maiores crises enfrentadas pela humanidade. O coronavírus, segundo alguns, seria um castigo divino a punir o ser humano pela sua recusa em reconhecer Deus como seu Criador e Senhor. Eu particularmente penso que essa é uma saída fácil demais para o problema. Sem negar a ação transcendente do divino na vida humana, penso que não estamos (ainda) no fim dos tempos, mas num momento de inflexão da história da raça humana.

Pensando especificamente no campo da História da Igreja, este é o momento para repensarmos como estamos produzindo conhecimento histórico sobre o catolicismo e o cristianismo. Como tentei demonstrar nas breves linhas anteriores, precisamos urgentemente retomar alguns pressupostos abandonados pelas modernas teorias da história da Igreja para, enfim, começarmos a compreender mais corretamente nosso objeto de estudos.

Reconhecer que os cristãos, tanto na Igreja docente quanto na discente, agem em dois planos da existência: o material e o espiritual. O primeiro, regido pelas leis da natureza e da sociologia e da antropologia; e o segundo, regido pela ação do Deus Onipotente, é pressuposto sem o qual não compreenderemos o que nós mesmos estudamos, ou pior, chegaremos a conclusões parciais e erradas sobre o cristianismo e o seu papel na história.

Tenho consciência de que essas afirmações são polêmicas, ainda mais quando o laicismo avança irresistivelmente por amplos setores da sociedade, relegando a religião a um papel menor. Minha proposta é audaciosa, eu bem sei, praticamente estou defendendo uma “virada de mesa” nessa discussão, recolocando a religião como agente ativo e protagonista da história. Quem leu atentamente as breves linhas anteriores percebeu isso.

Por outro lado, os estudos históricos sobre História da Igreja ainda têm um longo caminho a percorrer. Os conhecimentos acumulados nos últimos anos já nos permitem uma compreensão melhor do fenômeno religioso, faltando apenas um fecho: não deixar de lado que a instituição Igreja Católica possui uma missão divina, mas executa essa missão com instrumentos humanos limitados e falíveis. A famosa expressão: “carregar o ouro de Deus em vasos de barro rachados e derramando água”, ilustra bem o papel da Igreja Católica na história. Apesar de suas inúmeras falhas, os cristãos agem sabendo que, de uma maneira misteriosa, cumprem a missão que Cristo legou aos Apóstolos: ir ao mundo inteiro, e levar a mensagem do evangelho a todos os povos.

Esses eram os propósitos que nortearam minhas breves reflexões.

 

BIBLIOGRAFIA

AQUINO, Felipe. Escola da fé: I – a Sagrada Tradição. Lorena-SP: Cléofas, 2000.

AURELL, Jaume. Escrita da história: dos positivismos aos pós-modernismos. Trad. Rafael Ruiz. São Paulo: IBFC-Raimundo Lúlio (Ramon Llull), 2010.

BURKE, Cormac. Somos livres? São Paulo: Quadrante, 1989.

CRUZ CRUZ, Juan. Filosofia de la História. Pamplona, Espanha: EUNSA, 1995.

DANIÉLOU, Jean. Sobre o mistério da história: a esfera e a cruz. São Paulo: Herder, 1964.

DAWSON, Christopher. Progresso e religião: uma investigação histórica. São Paulo, É Realizações, 2012.

DAWSON, Christopher. A formação da cristandade: das origens judaico-cristãs à ascensão e queda da unidade medieval. Trad.: Márcia Xavier de Brito. São Paulo: É Realizações, 2014, 2ª reimpressão,

DAWSON, Christopher. Inquéritos sobre religião e cultura. Trad. Fabio Faria. São Paulo: É Realizações, 2017.

DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2015, 3ª ed. e 3ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2015.

ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno. Trad.: Manuela Torres. Lisboa, Edições 70.

HAHN, Scott. Anjos e santos: um guia bíblico para a amizade com os que estão junto de Deus. São Paulo: Quadrante, 2018

LORTZ, Joseph. História de la Iglesia Vol. I. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1965.

MARITAIN, Jacques. Sobre a filosofia da história. São Paulo: Herder, 1962.

MARROU, Henri-Irenée. Teologia de la História. Madri: RIALP, 1968.

MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

MORUJÃO, Geraldo. Apocalipse: um guia de leitura para hoje. São Paulo: Quadrante, 2010.

ORLANDIS, José. História breve do cristianismo. In: Col. Biblioteca de Iniciação Teológica. No. 15. Trad. Osvaldo Aguiar. Lisboa: DIEL, 2008, 6ª edição.

ROPS, Daniel. A Igreja dos apóstolos e dos mártires. In: Col. História da Igreja, Vol. I. São Paulo: Quadrante, 1988.

SARAH, Cardeal Robert. – DIAT, Nicolas. A noite se aproxima e o dia já declinou. São Paulo: Fons Sapientiae, 2019.

WERNET, Augustin. A Igreja paulista no século XIX: a reforma de D. Antonio Joaquim de Melo (1851-1861). São Paulo: Ática, 1987.

domingo, 30 de agosto de 2020

O QUARTO CÁLICE (Scott Hahn) – apontamento final

 

... e finalmente chegamos ao último post sobre o livro de Scott Hahn.

Na parte final do livro Hahn tece diversos comentários sobre o papel da Páscoa cristã na vida dos fiéis. Hahn nos lembra que a vida neste mundo é milícia.

Enquanto estivermos neste mundo alternaremos momentos de alegrias e tristezas, dores e gozos, mas nada disso terá sentido se não for encarado à luz do sacrifício de Jesus na Cruz. Jesus morreu na Cruz para salvar a todos nós, crentes e não crentes, amigos e inimigos de Deus. Ele sendo Deus sabia que pelos milênios afora muitos não iam aceitar seu sacrifício sangrento de redenção. Como disse papa Francisco Deus é rico em misericórdia (Dives in misericórdia), não quer o mal e a perdição de ninguém, mas sim que todos se salvem. Assim como fez com Judas Iscariotes, até o último instante dá os meios para o maior dos pecadores mudar de rumo e se converter. É dentro dessa lógica que Hahn conclui que a aceitação da dor pelos cristãos é a chave para coparticiparmos de seu sacrifício na Cruz. Nas suas próprias palavras:

 

“O amor de Jesus por nós expressa-se perfeitamente em sua hora, seu cálice, seu sofrimento – no Mistério Pascal. Tendemos a nos esquecer disso. Queremos experimentar o amor como prazer. Gostamos de imaginar o amor dessa maneira. E é mesmo verdade que não há prazer mais elevado que o amor”.

“Entretanto, o amor como ocasião de sensações agradáveis o gozo da presença de alguém – não é idêntico a essas sensações agradáveis. Além disso, o amor pode prosperar na ausência do prazer. Pense numa esposa que cuida de seu marido em estágio avançado de demência. Ela não conhece mais os prazeres da conversação. Ele não compra mais presentes para ela nem lhe envia flores. O corpo dele, antes belo, agora pesa quando ela o levanta de sua cadeira e o guia até a mesa”.

“Ela sofre por amor do outro. Entrega-se altruisticamente, como Cristo se entregou. Ela conhece a difícil alegria que vem do verdadeiro amor”. (...).

“Sempre que as pessoas amam, é assim que o fazem. O amor é a resposta ao enigma do sofrimento. O sofrimento é a resposta ao enigma do amor. Só com Jesus – e, de modo particular, como Mistério Pascal – Deus revelou a resposta aos enigmas perenes de nossa existência”.

“Com sua Paixão e sua Páscoa, Jesus nos guia, ensina e dá o poder de viver a vida do céu, que é o amor. Sua vida impele-nos primeiro a imitá-lo; depois, a buscar a união com ele; e enfim, a permitir que Ele aja em nós. É então que a vontade do Pai se faz. Por meio do Mistério Pascal – a hora, o cálice -, entramos em comunhão com Jesus. Partilhamos de sua vida. Participamos dela”[1].

 

Em resumo: no amor encontraremos a dor; e na dor o verdadeiro sentido do amor. Quem já se sacrificou por outra pessoa sem esperar nenhum tipo de agradecimento ou retribuição sabe bem do que estou falando aqui. Esse é que era o cálice que Jesus pediu para o Pai Celeste que afastasse, mas logo em seguida Ele pediu que se fizesse a vontade Dele e não a sua...

E aqui termino por hoje. Espero que tenham gostado.



[1] HAHN, Scott. O quarto cálice: desvendando o mistério da Última Ceia e da Cruz. São Paulo: Quadrante, 2020, p. 150.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

O QUARTO CÁLICE (Scott Hahn) – segundo apontamento

No post da semana passada o leitor amigo pode ter ficado bravo já que não esclareci quase nada do livro de Scott Hahn O quarto cálice, mas como eu havia alertado esta sequência de postagens não tem como finalidade reproduzir na íntegra o pensamento do autor, mas apenas compartilhar algumas impressões.

Hahn ao longo de suas pesquisas foi se aprofundando mais e mais na Tradição dos primeiros séculos do cristianismo, chegando após anos de árduos estudos a conversão ao catolicismo. Ao iniciar seus estudos em uma universidade católica, ele decidiu assistir a uma missa para entender a celebração eucarística. Sua intenção era agir como um pesquisador de campo observando pássaros e animais, mas o que ele encontrou foi muito mais. Deixemos ele concluir com suas próprias palavras suas impressões, marcadas pelo espanto e a surpresa mesmo décadas após o fato narrado:

 

“Estaria ali somente como observador, como um acadêmico que empreendia uma investigação histórica. Decidi comparecer a uma das Missas de dia de semana, sabendo que elas atraíam multidões menores que a Missa Dominical. Com minha Bíblia e um caderno, sentei-me no banco de trás da capela da universidade. Estava bem preparado. Tinha tomado todas as precauções. Não estaria mais seguro nem mesmo se houvesse utilizado uma bolha plástica por observatório”.

“No entanto, logo percebi que não estava preparado de forma alguma. O que experimentava ali era uma imersão nas Escrituras – tanto no Antigo como no Novo Testamento. Ao mesmo tempo, não se parecia em nada com um grupo de estudo bíblico. Não se parecia em nada com uma aula. Não havia nada ali que alguém pudesse encarar como entretenimento. Não havia nada que parecesse calculado ou calibrado para estimular minhas emoções”.

“As palavras e o culto eram dirigidos a Deus. Diziam respeito a Ele. As fórmulas rituais eram profundamente trinitárias, como as bençãos e saudações de São Paulo. Quando as pessoas não estavam lendo diretamente da Bíblia, o sacerdote estava pronunciando orações ricas em citações e alusões bíblicas, extraídas livremente do Genesis ao Apocalipse”.

“Do Apocalipse, sobretudo. Quase tudo o que vi na capela lembrava-me desse último livro do cânone. Havia um altar e um clero investido. Havia castiçais dourados. A congregação entoava a canção dos anjos do céu: ‘Santo, Santo, Santo’. E, a todo momento, fazia-se menção de Jesus como ‘o Cordeiro’”.

“O rito da Missa evocava o céu – como se estivéssemos mesmo lá -, e o acontecimento como um todo apresentava certa qualidade pascal. Não se tratava apenas da menção do ‘Cordeiro’, embora isso realmente só fizesse sentido em face da Páscoa de Jesus. A Missa inteira estava repleta de símbolos pascais. Percebi muitos deles naquele primeiro dia e ainda outros à medida que fui retornando à Missa nos dias seguintes”.

“Não pude deixar de concluir que a renovação da aliança celebrada pelos católicos era consistente e contínua (como cumprimento) em relação à renovação da aliança celebrada pelo Israel antigo. Do mesmo modo, era profundamente bíblica e cristocêntrica”[1].

 

Páginas depois Hahn comentou do começo da caminhada de sua esposa no catolicismo, que foi mais demorado e acidentado:

 

“(...) ela também começou a reparar no quão profundamente bíblicos eram os ritos da Igreja Católica. Se se incluírem os Salmos Responsoriais, fazem-se dezessete leituras extensas das Escrituras ao longo da liturgia. Era mais Bíblia do que ela, filha de pastor, jamais havia lido num culto dominical”[2].

 

Hahn descreveu acontecimentos ocorridos mais de três décadas atrás. Como historiador fui habituado a desconfiar de relatos pessoais distantes no tempo. Digo isso porque, infelizmente, a memória é móvel e ao longo do tempo omitimos e acrescentamos detalhes novos a nossas memórias com o uso da imaginação. Essa é uma operação diversas vezes involuntária, outras nem tanto, que levam a nós historiadores de ofício a sempre desconfiar de nossas fontes documentais.

O testemunho de Scott Hahn dói em pessoas como eu que, devido o isolamento social provocado pelo Coronavírus e o impedimento de frequentar missas e sacramentos. Provoca dentro do meu ser o desejo de voltar a prática religiosa o quanto antes. Me vem a mente as palavras do “Catecismo verdinho”, aquele das perguntas e respostas que a certa altura dizia: “basta uma comunhão eucarística perfeita para merecermos o Céu”. Bom, isso foi lá em 1992. De lá pra cá assisti missas calmamente, outras olhando o relógio. Comunguei atento, distraído e, em algumas ocasiões de forma não muito digna, e talvez até indigna, para mais tarde correr pra me confessar.

MEA CULPA, MEA MAXIMA CULPA... Como sou tapado me confessava e, bola pra frente!

 

Pensemos nisso quando, finalmente, conseguirmos assistir a missa completa e presencial, para enfim podermos comungar o verdadeiro sangue e carne de Jesus escondidos sob as espécies do pão e do vinho!



[1] HAHN, Scott. O quarto cálice: desvendando o mistério da Última Ceia e da Cruz. São Paulo: Quadrante, 2020, p. 124-125.

[2] Idem, ibidem, p. 134. Essa informação de que católico lê mais Bíblia que protestante no culto dominical é confirmada por Alex Jones (um pastor pentecostal convertido ao catolicismo) na sua obra Não tem preço.