Este pequeno texto apenas quer retirar do pó do esquecimento algumas ideias que há milênios e séculos foram formuladas por homens mais sábios e inteligentes do que eu. Se Isaac Newton entendia que era um anão nos ombros de gigantes, eu acho que sou o papagaio nos ombros desses anões.
Quero situar o leitor na
relação entre história e cristianismo. Já alerto que, se você entende a
história como ação e o historiador/professor de história como um militante
intelectual e político (seja de esquerda ou de direita) você vai achar o texto
apenas bem intencionado e nada mais. Para mim, ao contrário do que Marx
escreveu nas suas Teses contra Feuerbach: “Os filósofos anteriores interpretaram o mundo. Cabe agora
transformá-lo”. O intelectual deve ser um engajado que queira transformar o
mundo seguindo o programa marxista, do contrário será um utópico ou alienado.
Penso diferentemente de Marx. Para mim, não cabe transformar o mundo se você
primeiro não for capaz de interpretá-lo, muito menos entendê-lo.
Não formulo ideias novas,
apenas as trago para o nosso tempo para que sejam novamente lidas, pensadas,
meditadas e aplicadas, ou seja, quero ver a tradição vivida, e não recriada,
reformada, restaurada, transportada para o tempo presente, como alguns
movimentos contemporâneos dentro e fora do catolicismo almejam: recriar um
passado dourado do cristianismo. Um pensador muito mais erudito do que eu, há
um século disse o mesmo, mas de forma melhor:
“Um velho impulso em
ação em um novo ambiente, diferente daquele ao qual estava originalmente
adaptado, pode não ser meramente uma sobrevivência decadente, mas uma pedra
fundamental na aquisição de novos poderes para a adoção de uma nova concepção
de realidade. Portanto, há engrandecimento contínuo no campo da experiência, e
graças à razão, o novo não substitui simplesmente o velho, mas é comparado e
combinado com ele. A história da humanidade, e mais ainda da humanidade
civilizada, demonstra um processo contínuo de integração que, apesar de poder
dar a impressão de que opera irregularmente, nunca para” (DAWSON: 2017, p.146).
Transportar em bloco o
passado ao presente só traria um mundo morto de volta. Algo parecido ocorre com
a História da Igreja: os conhecimentos históricos aumentaram muito nas últimas
décadas, e esse conhecimento acumulado não pode ser simplesmente descartado.
Por outro lado, as análises antigas não devem ser ignoradas. Se elas
envelheceram na questão do acúmulo de dados e informações, ainda são valiosas
pelos seus métodos e visões de mundo, filosofias e teologias que as inspiraram.
Para poder dar seguimento
a nossa discussão, vale definirmos algumas ideias importantes. Trabalhar
conceitos nem sempre é uma tarefa fácil e agradável, mas necessária para não
nos perdermos no significado das palavras. No campo da História da Igreja,
assim como no da história em geral, esse cuidado preliminar é fundamental.
Igreja
e igreja: Uso a expressão Igreja
em maiúscula para determinar que estou tratando de uma instituição já
consolidada pelo tempo,
com
um Cânon e um corpo doutrinal já
cristalizados pelo uso e liturgia já estabelecida. O termo igreja em minúsculo será usado para referir-se ao local ou
comunidade particular onde os cristãos se reúnem, sejam católicos,
protestantes, reformados ou ortodoxos.
Quem fundou a Igreja?: O Fundador da Igreja foi Jesus
Cristo. A História da Igreja Católica começa na Encarnação
de Jesus no útero de Maria. Entre seus seguidores havia um grupo especial, que
foi posteriormente identificado como “Apóstolos”. Todos escolhidos pelo seu
fundador. Uma autora que longamente refletiu sobre o fato de Jesus ter
escolhido homens entre seus mais diretos colaboradores, e o fato de apenas
homens poderem ser sacerdotes, foi Edith Stein. Suas conferências mais
interessantes sobre este assunto foram reunidas no livro A mulher. (Ed. EDUSC).
Quando falo de História
da Igreja automaticamente refiro-me à instituição Igreja Católica Apostólica Romana, cujo “chefe” é o papa romano,
sucessor do Apóstolo Pedro, martirizado no ano de 64 pelo Imperador Romano
Nero, crucificado de cabeça para baixo, por se considerar indigno de morrer
como seu Mestre, Jesus. Nessa Igreja os sucessores de Pedro Apóstolo
perpetuaram-se ao longo de dois milênios, sendo o atual papa Francisco.
A
História da Igreja Católica desenvolve-se a partir de três pressupostos
a) A
Igreja Católica é Jesus Cristo. Cristo comunica-se com cada um de seus membros;
b) Os
membros da Igreja Católica também se comunicam entre si através da comunhão dos
santos;
c) O
membro da Igreja Católica entra em contato com Jesus Cristo através dos Sacramentos,
da Sagrada Escritura e do Magistério da Igreja retamente ensinado pela
Igreja docente. Por sua vez, a Igreja docente é formada pelo Papa, cardeais,
bispos, e sacerdotes.
As “leis da história” não
são anuladas e valem para a “história da Igreja”:
1) A
irrepetibilidade do fato histórico – o fato histórico é individual e
irrepetível;
2) O
fato histórico é conhecido através de registros: documentos e monumentos. Após
a fundação da Escola dos Annales em 1928, o conceito de documento e
monumento ampliou-se muito, mas na essência é o mesmo: o vestígio do passado
que, de forma deliberada ou não, chegou até o historiador no tempo atual;
3) A
ação humana é individual;
4) A
ação humana é livre. O homem possui livre-arbítrio, no sentido agostiniano do
termo;
5) O
ser humano age em três esferas: o mundo, a sociedade onde ele vive, os grupos
ele interage (escola, igreja, família, clube, amizades).
6) O
livre-arbítrio é o fator mais importante de todos. Aqui me baseio no livro
Filosofia da história de Juan Cruz Cruz, em particular os capítulos sobre
“Tradição” e “Revolução”.
Essa objeção é colocada
vez ou outra por quem entende falar de religião como simplesmente fazer
prosélitos, ou seja, proselitismo, no sentido negativo do termo. O historiador
da Igreja precisa estar alerta a esse perigo. Entendo “Apologética” como todo o
esforço em fazer conhecer a religião cristã. Nesse sentido todo aquele que
passa a estudar e a ensinar sobre sua fé seria um apologista.
Um fiel sincero vai
querer, sempre que a oportunidade aparecer, professar sua religião a outros. Ou
seja: se o historiador for honesto com sua consciência, terá de admitir que
pode ocorrer de ele usar seu conhecimento em benefício da religião. Uma saída
para esse dilema é reconhecer que, mesmo sendo cristão, sua pesquisa procura se
orientar sob critérios científicos. Todo aquele que almeje entender cada vez
mais a história da sua religião deverá encarar os fatos de forma sóbria, sem
querer esconder nada de vexatório ou repulsivo.
Os personagens da
História da Igreja
Os personagens dessa
“História”, resumidamente, são dois: Deus e os seres humanos. Deus é o
“criador” de tudo, mas quer sempre contar com a nossa cooperação para realizar
a obra de nossa salvação. Logo, precisamos estar em sintonia com Deus, estar a
par de sua Vontade para conosco.
Jean Daniélou vê como
inconformadas as pessoas que se aproximam de Deus pelos sacramentos. A vida
espiritual, que Danielou denominou “vida sacramentaria”, vivida seriamente leva
o fiel a conclusão de que o “mundo”, apesar de criado por Deus e portanto bom
na sua origem, apresenta os sinais da rebelião humana: erros, assassinatos,
crimes, o mau uso dos bens naturais dados por Deus, etc.:
“(...)
a verdadeira resposta está, ao contrário, num Cristianismo vivido integralmente
e em particular na vida sacramental – e assim os cristãos não viverão, de modo
algum, refugiados no seu Cristianismo, mas estarão na vanguarda do verdadeiro
movimento da História” (DANIÉLOU: 1964, p. 72).
Homens e mulheres, sejam
de Deus ou não, vivem no mundo. O mundo é o campo onde Deus quer que eles permaneçam
e vivam a santidade de vida:
“Por las múltiples fibras de su ser, el hombre está
ligado a la comunidad histórica en la que está inserto, a la ciudad que le hace
vivir, a la civilización que proporciona a su vida personal sus alimentos y su
forma: sea o no consciente, participa en una Historia en la que juega un papel”
(MARROU: 1968, p. 38).
Mas os cristãos são
cidadãos de outra história:
“(...) cada persona humana tiene también que jugar
su papel en otra Historia, la Historia espiritual, aquella según la cual se
realiza el plan escogido por Dios para la salvación del mundo, Heilsgeschichte,
la Historia Sagrada, la Historia que avanza misteriosamente hacia el último
día, en el que encontrará al mismo tiempo su final y su culminación según el
doble sentido de la palabra fin” (MARROU: 1968, p. 38-39).
O ser humano por
excelência é aquele que atinge a santidade em vida, tendo superado as
tendências e paixões. Não poderíamos conceber ações más e boas simultaneamente
nas pessoas. Como Jacques Maritain havia sugerido no seu livro “Sobre a
filosofia da história”:
“(...)
a norma absolutamente geral e simples segundo a qual o joio e o trigo crescem
juntos na história humana. Isto quer dizer que a marcha da História é um duplo
e antagônico movimento de ascensão e de descenso. Em outras palavras, a
História marcha num duplo e simultâneo progresso para o bem e para o mal.
Trata-se, a meu ver, de uma lei de fundamental importância, se quisermos
interpretar a história humana” (MARITAIN: 1962, p. 25).
De fato, há más
inclinações, paixões e mesmo pecados na vida dos maiores santos, mas o santo é
aquele que soube colecionar mais vitórias que derrotas nos momentos-chave de
sua vida. Daniel-Rops - conhecido autor da História da Igreja em dez volumes,
já publicados no Brasil - nos apresenta o cristão inconformado com o mundo que
sonha em transformar o mundo através de uma revolução, a “Revolução da Cruz”.
Como ele mesmo explicou no capítulo terceiro do primeiro volume da sua obra:
“O
cristianismo não é em si uma ‘força revolucionária’, no sentido político-social
que hoje se dá ao termo. Não é nem uma doutrina social nem uma doutrina
política. Não é tampouco uma moral segundo os termos da filosofia antiga, isto
é, a sua moral não é um fim em si, mas uma consequência, na vida mortal, de
princípios que transcendem essa mesma vida. O cristianismo não é nada mais e
nada menos do que a Revelação da Verdade eterna e total, por meio dos
ensinamentos, do exemplo, da morte e da ressurreição de Jesus, Deus feito
homem” (ROPS: 1988, p. 134).
Mas o cristão é sempre
filho do seu tempo. O próprio Rops reconhecia a “eterna recaída dos cristãos”
no aburguesamento, na sensualidade, no egoísmo, na ira etc. Rops nos alerta que
não podemos, mesmo tendo em vista o estado atual do mundo, deixar de temperar
nossa ação sem misericórdia.
O homem somente é livre
quando opta por se mover e aceitar o plano divino. Guerras, assassinatos,
desastres naturais e perseguições só ocorrem porque de uma forma misteriosa
auxiliam no cumprimento da História Sagrada. Os acontecimentos nefastos
originários da ação humana não são queridos por Deus, mas Ele os permite em
nome da liberdade humana.
Mas a doutrina cristã nos
lembra que a história do mundo terá um fim. Quando isso se dará ninguém sabe ao
certo.
O cristão crê, por ser
dogma de fé, que o mundo visível um dia terminará. Mas, quando e como se dará
esse fim? Daniélou, ao refletir sobre a parábola dos jornaleiros (Mt, 20)[R1] [EM2] ,
teceu algumas conjecturas que esclarecem um pouco sobre “os últimos momentos do
mundo”. Colocando as civilizações humanas no lugar dos operários da vinha, ele
comentou:
“A
Parusia não poderá vir senão quando todas as grandes civilizações forem
evangelizadas e se tenham realizado no Cristianismo. Nós não somos dela senão
ainda a sexta hora [o amanhecer de acordo com a contagem judaica do tempo usada
na época de Jesus]. Na praça os operários esperam ainda; para eles o contrato
de trabalho, o apelo à aliança não virá senão na hora nona ou na
décima-primeira hora. A cada um o mesmo salário é prometido, a mesma graça. Mas
ela é dada em tempos sucessivos. E esta economia é o próprio mistério do plano
de Deus, cujo segredo Ele se reserva zelosamente: Aut non licet mihi quod volo facere? [Não posso fazer dos meus bens
o que quero? (Mt. 20, 15)] Quais serão os operários da nona hora? Na vinha da
Igreja que novo cacho vai amadurecer? Podemos somente contemplar com admiração
o milagre do plano de Deus no seu misterioso crescimento. Será a China que dará
ao mundo a revelação de uma nova idade do Cristianismo e lhe trará os frutos da
santidade? Ou será a civilização negra cujo gênio tão profundamente religioso
renovará na Igreja o sentido, o mistério, a inteligência da liturgia, o espírito
de infância? As crises econômicas passarão, os grandes impérios cansar-se-ão de
rivalizar pelo domínio da terra. Mas a Igreja continuará sua marcha inelutável
em direção da plenitude e da edificação do corpo incorruptível de Cristo”
(DANIÉLOU: 1964, p. 163).
Daniélou nos apresenta o
gigantesco panorama da História da Igreja em escala universal: a civilização de
origem Greco-romana ao longo de milhares e milhares de anos amadureceu a fim de
formar uma civilização cristã de raiz ocidental-caucasiana, para mais tarde ver
nascer civilizações cristãs de raiz africana, asiática, e assim por diante.
Para Daniélou, o ocidente
cristão em formação e amadurecimento nos últimos 2000 anos é apenas o começo do
processo de evangelização. Outras civilizações ainda surgirão e amadurecerão,
para enfim, aceitarem a influência cristã num processo de milhares e milhares
de anos. No presente, o ocidente de raiz cristã está em plena decadência. Isso
é visível a todos. Seguindo o exemplo usado por Daniélou, ainda estamos ao fim
da hora sexta, as seis da manhã, ou seja, no amanhecer dessa história
gigantesca.
Nenhuma cultura deve
subordinar a mensagem do Evangelho. As culturas nascem, crescem, amadurecem e,
se deixarmos, podem morrer. Mas a mensagem evangélica adapta-se às culturas sem
perder sua identidade central: a mensagem de Jesus Cristo. Caso a leitura de
Daniélou esteja correta, ainda levaremos dezenas de milhares de anos para
chegarmos ao tempo da segunda vinda do Cristo à terra. Daniélou nos alerta que
o lapso até a consumação dos tempos será muito longo, sendo impossível
determinar com exatidão o momento do fim.
O filósofo, o teólogo da
história e o historiador da Igreja católica começam a perceber que há muitas
variáveis, muitas metodologias e abordagens teóricas a serem utilizadas para se
determinar o momento e o lugar dos últimos acontecimentos do mundo. Um autor
mais recente teceu considerações parecidas: “João Paulo II disse, com razão,
que estamos apenas no começo da evangelização” (SARAH: 2019, p.34).
Aqui reside uma das
maiores “decepções” do historiador da Igreja: não existem instrumentais
teóricos capazes de prever a chegada do “Juízo final”. Mesmo que o
amadurecimento das civilizações seja um indício seguro, ele é muito fluido e
discutível para ser preciso. Para Daniélou, a história da Igreja Católica segue
um ritmo similar ao da história econômica de longa duração de Fernand Braudel,
para quem a longuíssima duração remete a uma duração do tempo que quase
se confunde com a evolução da história natural.
[R3] A
história da Igreja não é uma aventura isenta de dores e sofrimentos. Muitas
vezes a dor, a morte, as guerras, pestes e derrotas fazem parte dessa história,
escrita não raras vezes com sangue (MARROU:
1968, p. 86). O mesmo Marrou apontou que o Mal no mundo será cada
vez mais visível, e o bem invisível:
“(...) el triunfo seguro del Bien quizá no sea jamás
perceptible a la observación empírica, mientras que la presencia eficaz del Mal
dejará siempre sentir su presión y su poder. En la víspera del instante supremo
en que la historia va a detener-se, una vez llegada a su término, cuando el
Cuerpo de Cristo haya alcanzado su perfecto crecimiento, puede ser que, en ese
momento, a los ojos carnales, del historiador de las instituciones y de las
técnicas y la mirada de los testigos, la tierra aparezca como un campo de
ruinas y esa época como un tiempo de fracasos” (MARROU: 1968, p. 98).
O “crescimento no bem”
será cada vez mais discreto, porém presente. Por outro lado, perante a presença
do mal onipresente e vencedor, o bem parecerá desaparecido, quando na realidade
o que estará acontecendo será justamente o contrário, ou seja: um dos sinais
visíveis da iminente Parusia será, aos olhos da opinião pública, a
aparente derrota de Cristo e de sua Igreja.
Mesmo entre diferentes
grupos dentro da Igreja ocorrerão lutas. O pecado obscurecerá o entendimento
dos cristãos e eles lutarão entre si. De fora, o espetáculo será deprimente,
verdadeira “contradição dos bons” (S. Josemaría Escrivá):
“[Santo Agostinho] añade que, item pugnant inter se mali et boni, también los malos y los buenos
andan a la greña. Ese es, por lo demás, el régimen normal de la historia:
Cristo no ha prometido a sus seguidores el triunfo para un mañana terrestre,
sino la persecución y el martirio. Tampoco con esa constatación se aquieta San
Agustín, sino que pasa a preguntarse si los buenos pueden combatirse entre
ellos: no lo harían, no podrían hacerlo, dice, si todos fuesen perfectos, pero,
lejos de serlo, están, en el mejor de los casos, en vías de progreso, en marcha
hacia la perfección, por eso se combate entre ellos, atacando cada uno, en
buena consciencia, en nombre del bien en el que creen, al mal demasiado real
que ven en el contrario” (MARROU: 1968, p. 127).
Além do obscurecimento do
entendimento é preciso apontar o livre-arbítrio, a liberdade de escolha que
pode fazer-nos escolher mal em vez de bem, mesmo pensando agir de forma bem
intencionada. Apesar de tantas misérias, Deus atua na História da Igreja sempre
de forma positiva, fazendo com que as escolhas e a ação humanas concordem com
seu “plano”. Marrou fez uma de suas afirmações mais belas ao dizer que a
santidade é o mais visível fruto da história da Igreja:
“Todo el tiempo que transcurre entre las dos Parusías,
los dos advenimientos del Señor, es el tiempo durante el cual Dios hace madurar
esos frutos de la historia que son los santos” (MARROU: 1968, p. 155-156).
Ou
seja: o surgimento dos santos é o indício mais visível e sensível de que a
história da Igreja avança rumo ao seu fim.
O
documento por excelência para reflexão da História da Igreja é o Livro do
Apocalipse
O Apocalipse foi escrito
por São João Apóstolo. Segundo a Tradição o livro do Apocalipse teria sido
escrito por volta dos anos 90-100 da era cristã. O livro procura apresentar o
panorama da história humana sob o olhar divino. Nele há uma luta titânica entre
o poder das trevas e o poder da luz, entre Deus e o Demônio, o Príncipe deste
mundo. O Demônio, que apesar de seus imensos poderes é criatura rebelada contra
seu Criador, quer destruir a mais querida obra divina: o ser humano:
“O
Apocalipse apresenta-se como uma profecia repleta de símbolos. Dado o seu poder
evocativo, este tem o condão de exprimir uma realidade que transcende a
linguagem e a experiência correntes, permitindo elevar-nos à contemplação do
mistério de Cristo vitorioso, Senhor do tempo e da História. Estamos perante
uma Teologia da História em linguagem figurada” (MORUJÃO: 2010, p. 13).
Eis a chave hermenêutica
da história humana: passando pelas crises, guerras, tormentas e mortes, a
Igreja personificada a cada geração nos seus fiéis está em pleno combate contra
as forças demoníacas. A luta entre os “filhos da luz e os filhos das trevas”
ocorre em dois planos da existência: o humano e o divino.
O
homem-cristão, imerso no tempo, ainda seria capaz de exercer seu “livre
arbítrio”?
De tudo o que foi dito
até o momento, essa objeção pode aparecer: o homem, diante do Deus todo
poderoso, ainda é livre, ou é apenas um brinquedo nas mãos divinas? Cormac
Burke resolve esse aparente dilema nos lembrando que a verdadeira liberdade
exercita-se na livre escolha do bem
“O
caminho que leva à liberdade é um caminho de montanha, e quem quiser
percorrê-lo terá que subir a encosta da justiça, do serviço, da humildade, da
castidade, do amor...”. “Quanto mais um homem lutar por prosseguir nesse
caminho, tanto mais livre se fará. E quanto mais livre for, tanto mais senhor
de si mesmo será, e tanto maiores o domínio e o controle plenos que terá sobre
todas as suas faculdades. Terá a liberdade de manter as faculdades e os
instintos inferiores adequada e dinamicamente subordinados às faculdades
superiores – a sensualidade ao amor, a ira à justiça, etc. – e conseguirá
também que as faculdades superiores se relacionem gozosamente com os valores
superiores: o amor com a bondade, a inteligência com a verdade. É somente ao
longo deste caminho que o nosso esforço se vê recompensado pelo encontro com a
liberdade” (BURKE: 1989, p. 27).
Só um homem e uma mulher
que livremente optam pelo bem são genuinamente livres. Porque a partir do
momento em que optamos pelo mal perdemos nossa liberdade, já que não podemos mais
optar pelo bem. Ou seja: já não somos mais livres!
Em resumo: quem faz a
História da Igreja? Deus e o homem. O homem escreve a história, mas Deus é o
corretor de texto, editor e dono da editora.
As
diversas Teologias da História
Teologias ou sistemas de
pensamento que nos oferecem saídas diferentes para conhecermos e cumprirmos a
Vontade de Deus, ou para ignorarmos essas questões, são uma constante na
história humana. Mesmo pessoas bem intencionadas podem, mal orientadas ou mal
formadas, desvirtuar pessoas ou grupos inteiros. Se o homem se afasta de Deus,
quer queira quer não, acaba decaindo e adotando falsas “teologias da história”:
“(...)
fica sugerida na idolatria um sistema religioso em oposição aberta ao
cristianismo. Esta Besta é ícone de um poder que rejeita Cristo e a sua Igreja,
impondo falsos cultos e uma ideologia com sucedâneos das mais variadas formas
ao longo dos tempos: sincretismo religioso, laicismo, relativismo, ateísmo
militante e sectário, materialismo dialético e prático, com as más
consequências que acarreta” (MORUJÃO: 2010, p. 105).
Já as ciências sociais
entendem o fundamentalismo religioso como ideologia. E nesse ângulo do problema
um autor que discorreu extensamente sobre o assunto foi o professor Peter Demant,
titular do DH-FFLCH-USP e atualmente ocupante da cadeira de História da Ásia. A
leitura do seu livro O mundo muçulmano
foi de grande utilidade, servindo de contraponto para entendermos o impacto da
modernidade no cristianismo, e pelo fato dele discorrer longamente sobre o
fundamentalismo religioso como ideologia. Partindo do choque do mundo muçulmano
com a modernidade, Demant entende que o fundamentalismo nasce como reação ao
laicismo, fruto da modernidade:
“O
conceito de ideologia está entre os mais controvertidos das ciências sociais.
Aplicamo-lo aqui no sentido original, iluminista-racionalista: o ‘logos das
ideias’, ou seja, uma ‘ciência’ que, partindo de princípios universais
abstratos, é aplicada para melhorar a sociedade. Não importa que os próprios
pontos de partida – a crença em Deus e Seu profeta, a literalidade do Alcorão
etc. – sejam em si não racionais (ou pelo menos não substanciáveis): isto vale
para muitas outras ideologias que em seu tempo se apresentaram como panaceia
para os males da humanidade, tais como os ideais liberais da Revolução
Francesa, o comunismo, o fascismo entre outros”.
“No
entanto, uma vez aceitos os princípios básicos da ideologia, todo o resto se
deduz pela razão, de maneira quase cientifica. Segue-se daí uma interpretação
coerente do mundo e de suas imperfeições; um programa não menos lógico para
remediar os defeitos, mediante uma mudança no mundo real; e a insistência para
que aqueles que aceitam a análise se engajem numa ampla luta pela realização
desse programa. (...) essa luta pede um compromisso total e irrevogável que
transforma o crente [muçulmano] num militante. A prioridade que esta luta exige
está em contradição com as demandas e os prazeres da vida cotidiana e exige que
o verdadeiro idealista deixe tudo para abraçar seu compromisso
político-religioso. O entusiasmo pode ir até a morte, sacrifício último em prol
de um fim transcendente, cuja realização, porém, já está certa. Na verdade, o
fundamentalismo muçulmano, como outras ideologias, inclui uma visão
determinista da história enquanto combate entre o Bem e o Mal, onde o indivíduo
é chamado a se tornar um soldado num exército cuja vitória é certa de antemão:
seu papel então se reduz à aceleração de um processo (meta-)historicamente
inevitável”.
“Mas
nessa submissão a um processo ‘automático’ (ou que pelo menos independe de sua
vontade individual), esconde-se também uma recompensa psicológica: a de
pertencer ou se juntar a uma elite de escolhidos privilegiados por sua tarefa
histórica – o povo eleito, os intelectuais, o proletariado -, o partido de
Deus”. (...).
“É
característico das ideologias do mundo moderno ambicionar o poder do Estado,
considerado a alavanca para a realização do paraíso na Terra. Guerras –
religiosas, ideológicas, sociais, etc. – são imprescindíveis, e uma grande
crise com muito sofrimento precederá a salvação final (o modelo original deste
tipo de pensamento é o messianismo judaico)”. (...).
“(...)
os mais extremos irão até glorificar a violência e a morte”. (...).
“(...)
se efetua a ligação entre o externo e o interno: a nova sociedade ‘pura’,
idealizada e imposta pela força existe para produzir o novo homem – sempre
imbuído de sua missão trans histórica, totalmente dedicado ao ideal e,
portanto, virtuoso e puro”.
“É
nítido como um tal programa pode (e para progredir, precisa) gerar fanatismo e
– se tiver êxito – conduzirá a um experimento de engenharia social totalitário
e sem controles democráticos. Modelo comum entre fundamentalistas muçulmanos e
ideólogos de outras tendências” (DEMANT: 2015, p. 302-304).
Entendemos assim que os
sistemas ideológicos tanto de direita quanto de esquerda apresentam-se como
“falsas teologias da história”, assim como muitas leituras radicais da
religiosidade cristã e, no caso específico estudado pelo prof. Demant – do
islamismo. A História da Igreja não se acomodaria ao socialismo e aos seus
diversos desdobramentos, por seguir uma ordenação sobrenatural, que vista
sob o prisma do acontecer humano – ou seria melhor dizer, mundano? – não
aparenta ter a menor lógica.
Em resumo: toda e
qualquer leitura, oriunda do cristianismo ou de qualquer outro sistema
ideológico, que proponha a instalação no tempo da um estado permanente de
felicidade e paz, não é verdadeira história da Igreja. A Parusia, o fim
da história da Igreja, ocorrerá fora do tempo, quando o número dos eleitos para
o Céu se completar.
A “História da
Igreja” não é história pura e simplesmente?
A História da Igreja é
uma disciplina peculiar que em diversos aspectos descola-se da história
profana. A história seria toda a ação humana, pura e simplesmente. Já a
História da Igreja envolveria os cristãos em Estado de Graça Santificante, ou
seja, que não possuem na consciência pecados mortais ou veniais deliberados, e
deste modo Deus pode agir através da colaboração deles. Nas palavras de Jean
Daniélou:
“A
história sagrada não é somente aquela que constitui os dois testamentos. Ela
tem continuação em nosso meio. Nós
vivemos em plena história sagrada. Deus continua a realizar suas
grandes obras, que são as da conversão, da santificação das almas” (DANIÉLOU:
1964, p. 14. O grifo é meu).
Mais recentemente o
historiador conservador italiano Roberto Mattei acusou Daniélou de heterodoxia
por interpretar passagens como essa de Sobre o mistério da história no
sentido de que Danielou estaria defendendo que a Revelação de Cristo não teria
se encerrado com a morte dos Apóstolos no séc. I, mas continuaria pelos milênios
afora até os dias atuais, uma leitura que, como podemos ver pelo fragmento
citado acima, não cabe. O que Danielou quis dizer é que a ação de Deus continua
no tempo, mas que a Revelação do Cristo se completou com o ensino dos
Apóstolos. As grandes realizações divinas, as efusões de Graças pelo Espírito
Santo continuam a ocorrer entre os cristãos de todos os tempos a partir de
Pentecostes. Negar isso seria negar a própria natureza da Igreja Católica: uma
Instituição humana com instrumentos humanos que querem cumprir um mandato
divino. Sob a inspiração do Espírito Santo os cristãos livremente escolhem agir
de acordo com o plano de Deus. Essa constatação permite que outro autor, Joseph
Lortz, vá mais longe e afirme que “a
história da Igreja é teologia”, que Deus se “rebaixa” ao nível dos seres
humanos, ou em suas palavras:
“(…) la peculiaridad histórico-eclesiástica, a diferencia
de la historia profana del pensamiento, no solo se
debe a que la Iglesia, en cuanto continuación mística de la encarnación del Logos,
es algo divino, sino a que ella misma representa la historia de lo divino en la
tierra. Mediante la encarnación, Dios ha querido participar en la historia
humana, Por eso, también la historia de la iglesia se halla bajo la dura y a
veces desconcertante ley de las tensiones e imperfecciones, que en ella ejercen
un influjo mucho más peligroso que en una comunidad meramente natural” (LORTZ:
1965, p. 05).
O historiador de ofício
se vê diante de um mundo estranho e novo: os fatos históricos são lidos em quatro
dimensões: tempo, materialidade
(documentos e monumentos), as pessoas e a ação de Deus. Religião e teologia
têm dimensões próprias, instrumentais próprios para analisar e compreender o
mundo. A cultura influencia a religião e a Igreja? De fato, sim. Mas a religião
e a Igreja não são simples “criaturas” da cultura. Cultura e religião
influenciam uma a outra numa via de mão dupla: a cultura influencia a religião e
a religião influencia a cultura. Sem levarmos esses fatores todos em
consideração a História da Igreja se vê reduzida à sociologia da religião,
filosofia da religião ou a história institucional. O historiador da cultura cristã Christopher Dawson definiu bem essa
relação entre religião e cultura:
“(...)
uma cultura não é nem um processo físico nem uma construção ideal. É um todo
vivo com suas raízes no solo e na vida instintiva simples do pastor, do
pescador e do fazendeiro até seu florescimento nas realizações mais elevadas do
artista e do filósofo, da mesma forma que o indivíduo combina, na unidade
substancial de sua personalidade, a vida animal de nutrição e de reprodução com
as atividades mais elevadas da razão e do intelecto. É impossível desconsiderar
a importância de um elemento material e não racional na história. Toda cultura
ancora-se no ambiente geográfico em que se assenta e em sua herança racial, que
condiciona suas atividades mais elevadas. Mudança de cultura não é simplesmente
uma mudança de pensamento, é acima de tudo uma mudança de vida. (...). A
tentativa idealista de ver na história apenas a ‘glória da ideia espelhando-se
na história do mundo’ [Hegel, Filosofia
da História], não faz melhor que o otimismo do dr. Pangloss, e traz à tona,
à maneira da dialética hegeliana, aquela opinião oposta e complementar de
Cândido, que considera a história como um rebuliço irracional de crueldade e de
destruição em que a força bruta e o acaso cego são os únicos determinantes”.
“Entretanto,
ainda que a cultura seja essencialmente condicionada por fatores materiais,
eles não são tudo. Uma cultura recebe sua forma de um elemento racional ou
espiritual que transcende os limites das condições raciais e geográficas.
Religião e ciência não morrem com a cultura da qual participam. São
transmitidas de pessoa para pessoa e funcionam como uma força criativa na
formação de novos organismos culturais” (DAWSON: 2012, p. 96-97).
História
eclesiástica, história da Igreja, teologia da história, tradição
A história é uma
disciplina que trata da narração de fatos que merecem ser salvos do
esquecimento, ou seja, a história é uma forma de transmissão de tradição.
O historiador é um narrador que se utiliza da prosa para salvar do esquecimento
acontecimentos previamente interpretados através de métodos de estudos
históricos. Mas é fundamental não nos esquecermos de que para o historiador
existe a objetividade histórica, fruto do paciente acúmulo de pesquisas que com
o tempo vão sanando dúvidas e debates historiográficos.
O surgimento do
cristianismo complicou mais as coisas. A visão circular do mundo antigo,
apoiada no mito do eterno retorno, entendia que o mundo havia atingido
um equilíbrio que nada poderia romper. Não haveria o conceito de história como
o conhecemos modernamente, como Mircea Eliade resumiu na sua obra mais
emblemática:
“Um sacrifício, por
exemplo, não só reproduz exatamente o sacrifício inicial revelado por um deus ab
origine, no princípio dos tempos, mas também se situa nesse mesmo momento
mítico primordial; quer dizer, todo o sacrifício repete o sacrifício inicial e
coincide com ele. Todos os sacrifícios são feitos no mesmo instante mítico do
princípio; o tempo profano e a duração são suspensos pelo paradoxo do rito. E o
mesmo se passa com todas as repetições, ou seja, com todas as imitações dos
arquétipos; através dessa imitação, o homem é projetado numa época mítica em
que os arquétipos foram pela primeira vez revelados. Surge-nos então um segundo
aspecto da ontologia primitiva: a repetição de gestos paradigmáticos confere
realidade a um ato (ou objeto) e é nessa medida que há uma abolição implícita
do tempo profano, da duração, da ‘história’; aquele que reproduz o gesto exemplar
é transportado assim para a época mítica em que esse gesto exemplar foi
revelado”.
“A abolição do tempo
profano e a projeção do homem no tempo mítico só se produzem em intervalos
essenciais, ou seja, naqueles em que o homem é verdadeiramente ele próprio: no
momento dos rituais ou dos atos importantes (alimentação, geração, cerimônias,
caça, pesca, guerra, trabalho, etc.). O resto da sua vida passa-se no tempo
profano e desprovido de significado: no ‘devir’” (ELIADE: p. 50).
O cristianismo, e antes
dele o judaísmo antigo, entendiam que o mundo tinha um princípio e um fim, ou
seja: havia um elemento complicador, o tempo, criado por Deus junto com as
criaturas com a função de medir seu desgaste. No judaico-cristianismo os
fatos históricos são irrepetíveis. Não há uma circularidade que permita a
repetição dos fatos como no paganismo antigo. Os fatos históricos se intercalam
através da passagem do tempo, em uma linearidade. Podemos entender que nasce
assim o conceito de história como o entendemos, tudo tem um começo, meio e fim.
A segunda vinda de Cristo marcará o fim da história humana que vai se consumar
definitivamente fora do tempo, no juízo final.
O cristianismo entende
que na plenitude dos tempos o próprio Deus encarnou-se, viveu e morreu entre
nós para enfim ressuscitar da morte e ascender aos Céus, prometendo voltar um
dia. Jesus Cristo, como seus discípulos o chamaram, inaugurou a história como a
conhecemos. O mundo tem uma existência linear no tempo, mas ganhou uma
finalidade que vai ser atingida fora do tempo, no Apocalipse e na sua
sequência, a Parusia.
O mundo como conhecemos é
maior do que imaginávamos, pois além do universo captado pelos sentidos
(pessoas, animais e plantas que o habitam, além dos elementos químicos, os
astros no universo etc.), há seres espirituais que, antes da criação do mundo,
já lutavam entre si. De um lado os anjos bons e Deus; do outro os anjos maus e
Lúcifer, o mais perfeito dos seres celestiais criados por Deus. Essa batalha
espiritual foi brilhantemente situada na história por Santo Agostinho de Hipona
na sua obra A cidade de Deus (De Civitate Dei) e é até hoje o ponto de
partida da reflexão de inúmeros pensadores e historiadores católicos:
“Em uma das suas
obras-primas, Santo Agostinho examinou a Comunhão dos Santos a partir de uma
única metáfora: a Cidade de Deus. Nesse lugar, a população, segundo ele, é
formada tanto pelas almas que já estão no Paraíso quanto pelas pessoas que
estão na Terra. A parte terrena da sua população, no entanto, não inclui apenas
aqueles que fazem parte de uma paróquia. Santo Agostinho defendia que muitos
daqueles que não professavam a fé cristã eram inconscientemente cristãos. Por
outro lado – dizia ele -, havia também aqueles que eram cristãos de carteirinha
e que, no entanto, viviam pelas leis de outra cidade: a Cidade dos Homens.
Neste mundo, no entanto, as duas cidades estão misturadas, como o joio e o
trigo na parábola de Jesus sobre o campo, ou os peixes e o lixo em sua parábola
sobre a rede”.
“Enquanto estamos na
terra, não podemos saber a qual direção outro indivíduo tende. O agnóstico pode
estar lutando em busca da sua santidade; por sua vez, o católico assíduo que
jamais deixa de ir à Missa aos domingos pode voltar para casa toda semana e se
entregar a vícios secretos por trás de uma porta fechada. Só Deus conhece o
censo da Comunhão dos Santos. Ele vê aquilo que nós não vemos”.
“Nunca se sabe também
como uma determinada história vai terminar. O atestado do amor verdadeiro se dá
na provação, no teste, na tentação, e às vezes o resultado é inesperado” (HAHN:
2018, p.51-52).
Mas a Cidade de Deus não
é exatamente uma obra de história da Igreja. Apesar de Agostinho tratar
longamente do desenvolvimento da ação divina no tempo, sua intenção era mais
comprovar uma tese do que propriamente narrar essa ação. Ela hoje seria
entendida mais como uma obra de teoria da história da Igreja do que
propriamente uma obra de história.
Nem mesmo a História
eclesiástica de Eusébio de Cesareia é exatamente uma obra de história da
Igreja. Escrita por um dos padres-conciliares participantes do Concílio de
Niceia (324), a preocupação de Eusébio era demonstrar a perenidade da
Igreja docente (padres, bispos e papas) através dos séculos desde Pentecostes,
ou seja, provar que a sucessão apostólica remontava aos Apóstolos e a Cristo.
Centrada desse modo nos clérigos, a obra desde sua concepção descrevia apenas
uma parte do povo de Deus, a que tem o múnus de ensinar e interpretar corretamente
o magistério da Igreja, a Tradição e as Escrituras Sagradas, os ungidos do
Senhor Jesus em uma linguagem evangélica.
Cientes dos problemas
hermenêuticos que estamos colocando, seria prudente tentarmos, mesmo que de
maneira preliminar, definir alguns termos.
História
eclesiástica: seria a história da Igreja
docente, parte da Igreja de Cristo: padres, bispos, cardeais e o papa. A
história de todos aqueles que receberam do Espírito Santo o múnus de ensinar e
interpretar retamente a doutrina cristã.
Essa missão não foi fruto
de um desenvolvimento sociológico ou corporativo da Igreja nascente, nem um
furor imperialista dos cristãos que queriam “subjugar espiritualmente” outros
povos, mas um mandamento divino como podemos ler na passagem a seguir:
“Foi-me dado todo o
poder no céu e na terra: ide, pois, ensinai todas as nações, batizando-as em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir tudo quanto
vos tenho mandado. E eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo” (Mateus
28, 18-20).
A Igreja Católica foi
fundada pelo próprio Deus encarnado. Jesus não era “tipo” Deus ou algo ou
alguém que lembrava Deus, mas Deus em pessoa. Essa é a crença dos cristãos,
essa é a crença dos católicos romanos. E eles não falharão na missão de ensinar
a todos os povos a doutrina do Cristo até o fim dos tempos. De uma
maneira misteriosa e incompreensível ao espírito humano a ação ou omissão dos
fiéis não impedirá que seja atingido o número dos eleitos, o número dos que
merecerão adentrar a glória celeste, e nem impedir que seja atingida a contagem
dos desgraçados que passarão a eternidade no inferno.
Esse múnus de ensinar e
interpretar a doutrina tem sido contestado devido ao acesso dos fiéis a
informações adquiridas pelas redes sociais. Esquecem esses católicos radicais
ou radtrads (radicais tradicionalistas) que o múnus de ensinar foi
prometido pelo próprio Deus Filho Jesus Cristo aos seus Apóstolos. A tradição
apostólica comprova essa “linha de sucessão” ao longo dos séculos. Entre
inúmeras testemunhas, seleciono uma das mais próximas ao “tempo dos Apóstolos”,
São Clemente Romano, terceiro papa na linha de sucessão de São Pedro Apóstolo
na diocese de Roma:
“Também os nossos
Apóstolos sabiam, por Nosso Senhor Jesus Cristo, que haveria contestações a
respeito da dignidade episcopal. Por tal motivo e como tivessem perfeito
conhecimento do porvir, estabeleceram os acima mencionados e deram, além disso,
instruções no sentido de que, após a morte deles outros homens comprovados lhes
sucedessem em seu ministério. Os que assim foram instituídos por eles, ou mais
tarde por outros homens iminentes com a aprovação de toda a Igreja, e serviram
de modo irrepreensível ao rebanho de Cristo com humildade, pacífica e
abnegadamente, recebendo por longo tempo e da parte de todos o testemunho
favorável, não é justo em nossa opinião que esses sejam depostos de seu
ministério” (SÃO CLEMENTE DE ROMA, PAPA. Carta aos Coríntios 42, 1-3. Apud:
AQUINO: 2000, p. 44-45).
A história eclesiástica
está interessada justamente nessa sucessão apostólica, em entendê-la e
comprová-la. Em tempos mais recentes vimos uma renovação no interesse pela
história eclesiástica em estudos de caráter histórico e sociológico surgidos na
academia, ou seja, pesquisas científicas sem preocupação espiritual, mas com a
intenção de compreender a dinâmica da Igreja docente como corpo jurídico e
institucional. Duas obras marcaram no Brasil essa retomada laica dos estudos de
história eclesiástica: os livros dos professores Augustin Wernet e Sérgio
Miceli. A partir dessas obras vieram inúmeras outras, artigos científicos,
dissertações de mestrado e teses de doutorado que procuraram mapear a
reestruturação institucional da Igreja Católica no Brasil.
A compreensão
institucional da Igreja já está bem encaminhada. Mas o entendimento da Igreja
como meio de levar a mensagem cristã a todos os povos – um empreendimento
sobrenatural, nunca é demais lembrar – precisa ser retomada.
História da Igreja e Teologia da história: Essas duas expressões são mais problemáticas porque até onde pude apurar não há um consenso no uso delas. A história da Igreja deve ser diferenciada da história das religiões, da sociologia e antropologia da religião, como também da antropologia histórica, embora todas essas disciplinas sejam limítrofes à História da Igreja. Alguns autores falaram também de uma história religiosa (Jaume Aurell na sua obra A escrita da história), complicando ainda mais a nossa busca pela definição terminológica. Para ficarmos em apenas dois exemplos, tanto a coleção de Biblioteca de Iniciação Teológica da Editora DIEL quanto o organograma da Universidade de Navarra[1] classificam a disciplina História da Igreja como teologia e disciplina teológica.
Mas, para ficarmos em uma
definição, poderíamos dizer que a história da Igreja é a história da
instituição Igreja, entendida como o conjunto de todos os seus fiéis, batizados
ou não, cristãos ou não, narrada e analisada sob um viés teológico e
espiritual, ou seja: História da Igreja e Teologia da História para fins
práticos são a mesma coisa.
Jaume Aurell não entendem
a história da Igreja como teologia, mas simplesmente a classifica como história
religiosa, sendo o historiador religioso por definição Henri Irenée-Marrou.
Pessoalmente não concordo com essa rotulação de Aurell. Para mim, o objeto
religião tem um múnus próprio que merece uma abordagem toda especial através de
um instrumental teórico adaptado a ele, uma teologia, em último caso:
“(...) o que quer que pensemos a respeito da verdade da doutrina
católica ou dos valores espirituais católicos, sem dúvida, o catolicismo
representa uma porção considerável da experiência espiritual e histórica. Se
ignorarmos isso, não poderemos nos considerar pessoas bem instruídas”.
“Se, no entanto, pretendermos explorar esse continente
desconhecido, precisaremos da ajuda de uma série de disciplinas diferentes. Uma
abordagem puramente teológica não é o bastante, embora essa é a que requererá o
maior esforço de compreensão. Devemos também estudá-lo como historiadores, já
que de todas as espécies de cristianismo, o catolicismo é uma das formas mais
profundamente comprometidas com a história; por fim e antes de mais nada,
devemos estudá-lo como pesquisadores da cultura, buscando compreender um modo
de vida religioso nada familiar, pois, quando protestantes e católicos se
encontram, a primeira coisa que os impressiona não é o conjunto diferente de
dogmas teológicos, mas o padrão diferente da vida religiosa” (DAWSON: 2014, p.
95).
O
estudo do fenômeno religioso é multidisciplinar e exige o cruzamento de uma
gama enorme de informações para compreendê-lo, daí a dificuldade dos
historiadores em estudá-lo adequadamente. As nossas escolhas morais impactam
diretamente na nossa visão de mundo e na nossa compreensão dos objetos que
escolhemos para pesquisar. Estudar o fenômeno religioso não é fácil.
Conclusões
Escrevo estas linhas
breves em meio a uma das maiores crises enfrentadas pela humanidade. O
coronavírus, segundo alguns, seria um castigo divino a punir o ser humano pela
sua recusa em reconhecer Deus como seu Criador e Senhor. Eu particularmente
penso que essa é uma saída fácil demais para o problema. Sem negar a ação
transcendente do divino na vida humana, penso que não estamos (ainda) no fim dos
tempos, mas num momento de inflexão da história da raça humana.
Pensando especificamente
no campo da História da Igreja, este é o momento para repensarmos como estamos
produzindo conhecimento histórico sobre o catolicismo e o cristianismo. Como
tentei demonstrar nas breves linhas anteriores, precisamos urgentemente retomar
alguns pressupostos abandonados pelas modernas teorias da história da Igreja
para, enfim, começarmos a compreender mais corretamente nosso objeto de estudos.
Reconhecer que os
cristãos, tanto na Igreja docente quanto na discente, agem em dois planos da
existência: o material e o espiritual. O primeiro, regido pelas leis da
natureza e da sociologia e da antropologia; e o segundo, regido pela ação do
Deus Onipotente, é pressuposto sem o qual não compreenderemos o que nós mesmos
estudamos, ou pior, chegaremos a conclusões parciais e erradas sobre o
cristianismo e o seu papel na história.
Tenho consciência de que
essas afirmações são polêmicas, ainda mais quando o laicismo avança
irresistivelmente por amplos setores da sociedade, relegando a religião a um
papel menor. Minha proposta é audaciosa, eu bem sei, praticamente estou defendendo
uma “virada de mesa” nessa discussão, recolocando a religião como agente ativo
e protagonista da história. Quem leu atentamente as breves linhas anteriores
percebeu isso.
Por outro lado, os
estudos históricos sobre História da Igreja ainda têm um longo caminho a
percorrer. Os conhecimentos acumulados nos últimos anos já nos permitem uma
compreensão melhor do fenômeno religioso, faltando apenas um fecho: não deixar
de lado que a instituição Igreja Católica possui uma missão divina, mas executa
essa missão com instrumentos humanos limitados e falíveis. A famosa expressão:
“carregar o ouro de Deus em vasos de barro rachados e derramando água”, ilustra
bem o papel da Igreja Católica na história. Apesar de suas inúmeras falhas, os
cristãos agem sabendo que, de uma maneira misteriosa, cumprem a missão que
Cristo legou aos Apóstolos: ir ao mundo inteiro, e levar a mensagem do
evangelho a todos os povos.
Esses eram os propósitos
que nortearam minhas breves reflexões.
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Igreja paulista no século XIX: a reforma de D. Antonio Joaquim de Melo
(1851-1861). São Paulo: Ática, 1987.
[1] Cf.: https://www.unav.edu/en/web/facultad-de-teologia/departamentos-y-centros-de-investigacion. Acessado no dia 27/09/2020.
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