“Vejamos agora
como os Padres procuraram defender a historicidade de Jesus, tanto contra os
incréus pagãos como contra os ‘heréticos’. Defrontados com o problema de
apresentar a vida autêntica de Jesus, ou seja, tal qual foi conhecida e
transmitida oralmente pelos Apóstolos, os teólogos da Igreja primitiva
encontraram-se perante um certo número de textos e tradições orais que
circulavam em diferentes meios. Os Padres deram provas de espírito crítico e
orientação ‘historicista’ ao se recusarem a considerar os Evangelhos apócrifos
e as logia agrapha como documentos autênticos. Eles abriram não obstante as
portas para longas controvérsias no seio da Igreja e facilitaram a ofensiva dos
não-cristãos ao aceitar não um, mas quatro Evangelhos. Como havia diferenças entre
os Evangelhos sinópticos e o Evangelho de João, foi preciso explicá-las e
justificá-las pela exegese”.
“A crise
exegética foi precipitada por Marcion, em 137. Marcion proclamava que existia
um único Evangelho autêntico, que de início foi transmitido oralmente, e depois
redigido e pacientemente interpolado pelos adeptos entusiastas do judaísmo.
Esse único Evangelho declarado válido era o de Lucas, reduzido por Marcion ao
que ele julgava ser o núcleo autêntico. Marcion havia aplicado o método dos
gramáticos greco-romanos, que afirmavam poder distinguir as excrescências
mitológicas dos antigos textos teológicos. Em sua réplica a Marcion e aos
outros gnósticos, os ortodoxos foram obrigados a usar o mesmo método”.
“Em princípios do II
século, Aelius Theon, em seu tratado Progymnasmata , mostrava a diferença
entre o mito e a narração: o mito é ‘uma exposição falsa retratando a verdade’,
ao passo que a narração é ‘uma exposição descrevendo os eventos que ocorreram
ou que poderiam ter ocorrido’. Os teólogos cristãos negavam, evidentemente, que
os Evangelhos fossem ‘mitos’ ou ‘histórias maravilhosas’. Justino, por exemplo,
não admitia que pudesse existir o risco de confundir os Evangelhos com
‘histórias maravilhosas’. A vida de Jesus era a realização das profecias do
Antigo Testamento, e a forma literária dos Evangelhos não era a de um mito.
Melhor ainda: Justino sustentava que era possível oferecer ao leitor
não-cristão provas materiais da veracidade histórica dos Evangelhos. A
Natividade, por exemplo, poderia ser demonstrada através das ‘declarações de
imposto apresentadas sob o procurador Quirino e (ex hypothesi?) acessíveis em
Roma um século e meio mais tarde’. Similarmente, um Taciano ou um Clemente de
Alexandria consideravam os Evangelhos como documentos históricos”.
“Para o nosso
escopo, porém, o mais importante é Orígenes. Orígenes estava demasiadamente
convicto do valor espiritual das histórias conservadas pelos Evangelhos para
admitir que se pudesse compreendê-las de uma maneira, grosseiramente literal,
como o faziam os simples crentes e os heréticos - razão por que ele pregava a
exegese alegórica. Mas, forçado a defender o cristianismo contra Celso, ele
insistiu na historicidade da vida de Jesus e esforçou-se por provar todos os
testemunhos históricos. Orígenes critica e rejeita a historicidade do episódio
dos mercadores expulsos do templo. Em seu sistema, que trata da inspiração e da
exegese, Orígenes nos diz que nos pontos onde a realidade histórica não se
harmonizava com a verdade espiritual, as Escrituras introduziam em suas
narrativas certos eventos, alguns totalmente irreais, outros que não poderiam
ter ocorrido e outros ainda que poderiam ter ocorrido mas não Ocorreram’. Em
lugar de ‘mito’ e ‘ficção’, ele usa ‘enigma’ e ‘parábola’; mas não há dúvida de
que para Orígenes esses termos são equivalentes”.
“Orígenes
reconhece, portanto, que os Evangelhos apresentam episódios que não são
historicamente ‘autênticos’, embora sejam ‘verdadeiros’ no plano espiritual.
Mas, ao responder às críticas de Celso, ele reconhece igualmente a dificuldade
de provar a historicidade de um evento histórico. ‘Tentar estabelecer a verdade
de qualquer história como fato histórico, mesmo que a história seja verdadeira,
é tarefa das mais difíceis e, algumas vezes, impossível’”.
“Orígenes
acredita, não obstante, que certos eventos da vida de Jesus são suficientemente
provados por testemunhos históricos. Por exemplo, Jesus foi crucificado perante
um grande número de pessoas. O tremor de terra e as trevas podem ser
confirmados pelo relato histórico de Phiegon de Tralles. A ultima Ceia é um
acontecimento histórico que pode ser datado com absoluta precisão. O mesmo se
dá com a prova do Getsêmane, embora o Evangelho de João não o mencione (mas
Orígenes explica a razão desse silêncio: João se interessa mais pela divindade
de Jesus e sabe que Deus, o Logos, não pode ser tentado). A ressurreição é
‘verdadeira’ no sentido histórico do termo, porque é um evento, embora o corpo
ressuscitado não mais pertença ao mundo físico. (O corpo ressuscitado era um
corpo aéreo, espiritual)”.
“Embora
Orígenes não duvide da historicidade da vida, paixão e ressurreição de Jesus
Cristo, ele se interessa mais pelo sentido espiritual, não-histórico, do texto
evangélico. O verdadeiro sentido está ‘além da história’. O exegeta deve ser
capaz de se ‘livrar dos materiais históricos’, pois estes não passam de um
‘trampolim’. Insistir excessivamente na historicidade de Jesus, negligenciar o
sentido profundo de sua vida e de sua mensagem, é mutilar o cristianismo. ‘Os
homens - escreve ele em seu Comentário ao Evangelho de Jesus - ficam
maravilhados quando consideram os eventos da vida de Jesus, mas se tomam
céticos quando lhes é revelada a significação profunda, que eles se recusam a
aceitar como verdadeira’”.
“Orígenes compreendeu
perfeitamente que a originalidade do cristianismo está, em primeiro lugar, no
fato de a Encarnação se haver efetuado num Tempo histórico e não num Tempo
cósmico. Ele não esquece, entretanto, que o Mistério da Encarnação não pode ser
reduzido à sua historicidade. Por outro lado, ao proclamar ‘às nações’ a
divindade de Jesus Cristo, as primeiras gerações de cristãos proclamavam
implicitamente sua trans-historicidade. Não que Jesus não fosse considerado um
personagem histórico; mas acima de tudo salientava-se que ele era o Filho de
Deus, o Salvador universal que redimira não somente o Homem, mas também a
Natureza. Mais ainda: a historicidade de Jesus já havia sido transcendida por
sua Ascensão ao Céu e por sua reintegração na Glória divina”.
“Ao proclamar
a Encarnação, a Ressurreição e a Ascensão do Verbo, os cristãos estavam
convictos de que não apresentavam um novo mito. Na realidade, eles se
utilizavam das categorias do pensamento mítico. Evidentemente, eles não podiam
reconhecer esse pensamento mítico nas mitologias dessacralizadas dos pagãos
eruditos seus contemporâneos. Mas é óbvio que, para os cristãos de todas as
confissões, o centro da vida religiosa é constituído pelo drama de Jesus
Cristo. Embora representado na História, esse drama possibilitou a salvação;
conseqüentemente, existe apenas um meio de obter a salvação: repetir
ritualmente esse drama exemplar e imitar o modelo supremo, revelado pela vida e
pelo ensinamento de Jesus. Ora, esse comportamento religioso faz parte do
pensamento mítico autêntico”.
“É preciso
acrescentar imediatamente que, pelo fato mesmo de ser uma religião, o
cristianismo teve de conservar ao menos um comportamento mítico: o tempo
litúrgico, ou seja, a recuperação periódica do illud tempus do ‘princípio’. ‘A
experiência religiosa do cristão baseia-se na imitação de Cristo como modelo
exemplar, na repetição litúrgica da vida, morte e ressurreição do Senhor, e na
contemporaneidade do cristão com o illud tempus, que se inicia com a Natividade
em Belém e se encerra, provisoriamente, com a Ascensão’. Ora, como vimos, ‘a
imitação de um modelo trans-humano, a repetição de um enredo exemplar e a
ruptura do tempo profano mediante uma abertura que desemboca no Grande Tempo,
constituem as notas essenciais do ‘comportamento mítico’, isto é, do homem das
sociedades arcaicas, que encontra no mito a própria fonte de sua existência’”.
“Todavia,
embora o Tempo litúrgico seja um tempo circular, o cristianismo, herdeiro fiel
do judaísmo, aceita o Tempo linear da História: o Mundo foi criado uma única
vez e terá um único fim; a Encarnação teve lugar uma única vez, no Tempo
histórico, e haverá um único Juízo. Desde o início, o cristianismo sofreu
influências múltiplas e contraditórias, sobretudo as do gnosticismo, do
judaísmo e do ‘paganismo’. A reação da Igreja não foi uniforme. Os Padres
desencadearam uma luta sem tréguas contra o acosmismo e o esoterismo da Gnose;
conservaram, entretanto, os elementos gnósticos apresentados no Evangelho de
João, nas Epístolas Paulinas e em certos textos primitivos. Mas, a despeito das
perseguições, o gnosticismo jamais foi radicalmente extirpado, e alguns mitos
gnósticos, mais ou menos camuflados, ressurgiram nas literaturas orais e
escritas da Idade Média”.
“Quanto ao
judaísmo, ele forneceu à Igreja um método alegórico de interpretar as
Escrituras e, sobretudo, o modelo por excelência da ‘historicização’ das festas
e dos símbolos da religião cósmica. A ‘judaização’ do cristianismo primitivo
equivale à sua ‘historicização’, à decisão dos primeiros teólogos de unir a
história da pregação de Jesus e da Igreja nascente à História Sagrada do povo
de Israel. Mas o judaísmo havia ‘historicizado’ um certo número de festas
sazonais e símbolos cósmicos, relacionando-os a eventos importantes da história
de Israel (cf. a Festa dos Tabernáculos, a Páscoa, a festa das luzes de Hanucá,
etc.). Os Padres da Igreja seguiram o mesmo caminho: eles ‘cristianizaram’ os
símbolos, os ritos e os mitos asiânicos e mediterrâneos, relacionando-os a uma
‘história sacra’. Essa ‘história sacra’ ultrapassava, evidentemente, os limites
do Antigo Testamento e agora englobava o Novo Testamento, a pregação dos
Apóstolos e, mais tarde, a história dos santos. Um certo número de símbolos
cósmicos - a Água, a Árvore e a Videira, a charrua e o machado, o navio, o
carro, etc. - já haviam sido assimilados pelo judaísmo, e puderam ser
facilmente integrados na doutrina e na prática da Igreja, recebendo um sentido
sacramental ou eclesiológico”[1].