quarta-feira, 15 de abril de 2020

Mircea Eliade: Valor dos Evangelhos

(No contexto da Páscoa cristã, vale a pena lermos um texto de um grande historiador das religiões tratando da historicidade dos Evangelhos. Aproveito e desejo uma feliz Páscoa a todos que pacientemente me seguem!).


“Vejamos agora como os Padres procuraram defender a historicidade de Jesus, tanto contra os incréus pagãos como contra os ‘heréticos’. Defrontados com o problema de apresentar a vida autêntica de Jesus, ou seja, tal qual foi conhecida e transmitida oralmente pelos Apóstolos, os teólogos da Igreja primitiva encontraram-se perante um certo número de textos e tradições orais que circulavam em diferentes meios. Os Padres deram provas de espírito crítico e orientação ‘historicista’ ao se recusarem a considerar os Evangelhos apócrifos e as logia agrapha como documentos autênticos. Eles abriram não obstante as portas para longas controvérsias no seio da Igreja e facilitaram a ofensiva dos não-cristãos ao aceitar não um, mas quatro Evangelhos. Como havia diferenças entre os Evangelhos sinópticos e o Evangelho de João, foi preciso explicá-las e justificá-las pela exegese”.
“A crise exegética foi precipitada por Marcion, em 137. Marcion proclamava que existia um único Evangelho autêntico, que de início foi transmitido oralmente, e depois redigido e pacientemente interpolado pelos adeptos entusiastas do judaísmo. Esse único Evangelho declarado válido era o de Lucas, reduzido por Marcion ao que ele julgava ser o núcleo autêntico. Marcion havia aplicado o método dos gramáticos greco-romanos, que afirmavam poder distinguir as excrescências mitológicas dos antigos textos teológicos. Em sua réplica a Marcion e aos outros gnósticos, os ortodoxos foram obrigados a usar o mesmo método”.
Em princípios do II século, Aelius Theon, em seu tratado Progymnasmata, mostrava a diferença entre o mito e a narração: o mito é ‘uma exposição falsa retratando a verdade’, ao passo que a narração é ‘uma exposição descrevendo os eventos que ocorreram ou que poderiam ter ocorrido’. Os teólogos cristãos negavam, evidentemente, que os Evangelhos fossem ‘mitos’ ou ‘histórias maravilhosas’. Justino, por exemplo, não admitia que pudesse existir o risco de confundir os Evangelhos com ‘histórias maravilhosas’. A vida de Jesus era a realização das profecias do Antigo Testamento, e a forma literária dos Evangelhos não era a de um mito. Melhor ainda: Justino sustentava que era possível oferecer ao leitor não-cristão provas materiais da veracidade histórica dos Evangelhos. A Natividade, por exemplo, poderia ser demonstrada através das ‘declarações de imposto apresentadas sob o procurador Quirino e (ex hypothesi?) acessíveis em Roma um século e meio mais tarde’. Similarmente, um Taciano ou um Clemente de Alexandria consideravam os Evangelhos como documentos históricos”.
“Para o nosso escopo, porém, o mais importante é Orígenes. Orígenes estava demasiadamente convicto do valor espiritual das histórias conservadas pelos Evangelhos para admitir que se pudesse compreendê-las de uma maneira, grosseiramente literal, como o faziam os simples crentes e os heréticos - razão por que ele pregava a exegese alegórica. Mas, forçado a defender o cristianismo contra Celso, ele insistiu na historicidade da vida de Jesus e esforçou-se por provar todos os testemunhos históricos. Orígenes critica e rejeita a historicidade do episódio dos mercadores expulsos do templo. Em seu sistema, que trata da inspiração e da exegese, Orígenes nos diz que nos pontos onde a realidade histórica não se harmonizava com a verdade espiritual, as Escrituras introduziam em suas narrativas certos eventos, alguns totalmente irreais, outros que não poderiam ter ocorrido e outros ainda que poderiam ter ocorrido mas não Ocorreram’. Em lugar de ‘mito’ e ‘ficção’, ele usa ‘enigma’ e ‘parábola’; mas não há dúvida de que para Orígenes esses termos são equivalentes”.
“Orígenes reconhece, portanto, que os Evangelhos apresentam episódios que não são historicamente ‘autênticos’, embora sejam ‘verdadeiros’ no plano espiritual. Mas, ao responder às críticas de Celso, ele reconhece igualmente a dificuldade de provar a historicidade de um evento histórico. ‘Tentar estabelecer a verdade de qualquer história como fato histórico, mesmo que a história seja verdadeira, é tarefa das mais difíceis e, algumas vezes, impossível’”.
“Orígenes acredita, não obstante, que certos eventos da vida de Jesus são suficientemente provados por testemunhos históricos. Por exemplo, Jesus foi crucificado perante um grande número de pessoas. O tremor de terra e as trevas podem ser confirmados pelo relato histórico de Phiegon de Tralles. A ultima Ceia é um acontecimento histórico que pode ser datado com absoluta precisão. O mesmo se dá com a prova do Getsêmane, embora o Evangelho de João não o mencione (mas Orígenes explica a razão desse silêncio: João se interessa mais pela divindade de Jesus e sabe que Deus, o Logos, não pode ser tentado). A ressurreição é ‘verdadeira’ no sentido histórico do termo, porque é um evento, embora o corpo ressuscitado não mais pertença ao mundo físico. (O corpo ressuscitado era um corpo aéreo, espiritual)”.
“Embora Orígenes não duvide da historicidade da vida, paixão e ressurreição de Jesus Cristo, ele se interessa mais pelo sentido espiritual, não-histórico, do texto evangélico. O verdadeiro sentido está ‘além da história’. O exegeta deve ser capaz de se ‘livrar dos materiais históricos’, pois estes não passam de um ‘trampolim’. Insistir excessivamente na historicidade de Jesus, negligenciar o sentido profundo de sua vida e de sua mensagem, é mutilar o cristianismo. ‘Os homens - escreve ele em seu Comentário ao Evangelho de Jesus - ficam maravilhados quando consideram os eventos da vida de Jesus, mas se tomam céticos quando lhes é revelada a significação profunda, que eles se recusam a aceitar como verdadeira’”.
“Orígenes compreendeu perfeitamente que a originalidade do cristianismo está, em primeiro lugar, no fato de a Encarnação se haver efetuado num Tempo histórico e não num Tempo cósmico. Ele não esquece, entretanto, que o Mistério da Encarnação não pode ser reduzido à sua historicidade. Por outro lado, ao proclamar ‘às nações’ a divindade de Jesus Cristo, as primeiras gerações de cristãos proclamavam implicitamente sua trans-historicidade. Não que Jesus não fosse considerado um personagem histórico; mas acima de tudo salientava-se que ele era o Filho de Deus, o Salvador universal que redimira não somente o Homem, mas também a Natureza. Mais ainda: a historicidade de Jesus já havia sido transcendida por sua Ascensão ao Céu e por sua reintegração na Glória divina”.
“Ao proclamar a Encarnação, a Ressurreição e a Ascensão do Verbo, os cristãos estavam convictos de que não apresentavam um novo mito. Na realidade, eles se utilizavam das categorias do pensamento mítico. Evidentemente, eles não podiam reconhecer esse pensamento mítico nas mitologias dessacralizadas dos pagãos eruditos seus contemporâneos. Mas é óbvio que, para os cristãos de todas as confissões, o centro da vida religiosa é constituído pelo drama de Jesus Cristo. Embora representado na História, esse drama possibilitou a salvação; conseqüentemente, existe apenas um meio de obter a salvação: repetir ritualmente esse drama exemplar e imitar o modelo supremo, revelado pela vida e pelo ensinamento de Jesus. Ora, esse comportamento religioso faz parte do pensamento mítico autêntico”.
“É preciso acrescentar imediatamente que, pelo fato mesmo de ser uma religião, o cristianismo teve de conservar ao menos um comportamento mítico: o tempo litúrgico, ou seja, a recuperação periódica do illud tempus do ‘princípio’. ‘A experiência religiosa do cristão baseia-se na imitação de Cristo como modelo exemplar, na repetição litúrgica da vida, morte e ressurreição do Senhor, e na contemporaneidade do cristão com o illud tempus, que se inicia com a Natividade em Belém e se encerra, provisoriamente, com a Ascensão’. Ora, como vimos, ‘a imitação de um modelo trans-humano, a repetição de um enredo exemplar e a ruptura do tempo profano mediante uma abertura que desemboca no Grande Tempo, constituem as notas essenciais do ‘comportamento mítico’, isto é, do homem das sociedades arcaicas, que encontra no mito a própria fonte de sua existência’”.
“Todavia, embora o Tempo litúrgico seja um tempo circular, o cristianismo, herdeiro fiel do judaísmo, aceita o Tempo linear da História: o Mundo foi criado uma única vez e terá um único fim; a Encarnação teve lugar uma única vez, no Tempo histórico, e haverá um único Juízo. Desde o início, o cristianismo sofreu influências múltiplas e contraditórias, sobretudo as do gnosticismo, do judaísmo e do ‘paganismo’. A reação da Igreja não foi uniforme. Os Padres desencadearam uma luta sem tréguas contra o acosmismo e o esoterismo da Gnose; conservaram, entretanto, os elementos gnósticos apresentados no Evangelho de João, nas Epístolas Paulinas e em certos textos primitivos. Mas, a despeito das perseguições, o gnosticismo jamais foi radicalmente extirpado, e alguns mitos gnósticos, mais ou menos camuflados, ressurgiram nas literaturas orais e escritas da Idade Média”.
“Quanto ao judaísmo, ele forneceu à Igreja um método alegórico de interpretar as Escrituras e, sobretudo, o modelo por excelência da ‘historicização’ das festas e dos símbolos da religião cósmica. A ‘judaização’ do cristianismo primitivo equivale à sua ‘historicização’, à decisão dos primeiros teólogos de unir a história da pregação de Jesus e da Igreja nascente à História Sagrada do povo de Israel. Mas o judaísmo havia ‘historicizado’ um certo número de festas sazonais e símbolos cósmicos, relacionando-os a eventos importantes da história de Israel (cf. a Festa dos Tabernáculos, a Páscoa, a festa das luzes de Hanucá, etc.). Os Padres da Igreja seguiram o mesmo caminho: eles ‘cristianizaram’ os símbolos, os ritos e os mitos asiânicos e mediterrâneos, relacionando-os a uma ‘história sacra’. Essa ‘história sacra’ ultrapassava, evidentemente, os limites do Antigo Testamento e agora englobava o Novo Testamento, a pregação dos Apóstolos e, mais tarde, a história dos santos. Um certo número de símbolos cósmicos - a Água, a Árvore e a Videira, a charrua e o machado, o navio, o carro, etc. - já haviam sido assimilados pelo judaísmo, e puderam ser facilmente integrados na doutrina e na prática da Igreja, recebendo um sentido sacramental ou eclesiológico”[1].



[1] ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo, Perspectiva. 1972. p. 143-148.