Olá meus raros leitores! Não resisti e já voltei à carga de notinhas cheias de referencias, citações e comentários indigestos.
Hoje queria dar continuidade a um assunto que
abordei na ultima nota e teve reações positivas de amigos e conhecidos: a série
da Netflix The chosen (Os escolhidos). Mas porque uma série que trata de um assunto já tantas vezes abordado,
pra não dizer batido, tem causado tanto interesse? Coloco aqui alguns
apontamentos meus que podem nos dar pistas do segredo dessa série
despretensiosa que está empolgando muitos ao contar uma história há tanto tempo
conhecida.
The chosen fala para a geração Millenial
Na minha nota anterior (cf:https://teologiadahistoriabrasil.blogspot.com/2024/01/o-que-ando-assistindo-nas-horas-de.html) comentei que The chosen ocupa hoje o papel das biografias e vidas de
Jesus escritas nos sécs. XX e começos do XXI. Admito que li a maioria delas com
interesse e gosto.
Mas os jovens de hoje
não tem dinheiro ou a paciência de ler tomos com centenas de páginas,
digressões teológicas, escolas de interpretação bíblicas, formação e origem dos
manuscritos bíblicos, fonte Quelle, teoria das formas, Jesus
histórico e/ou/versus Cristo da fé, linhagens dos copistas
medievais, nouvelle theologie, etc, etc, etc,...
Ok, há aqui um
componente de acomodação e preguiça mental, mas isso não diminui o valor de The
chosen ao dialogar com essa molecada que assiste na telinha do celular o início
da vida pública de Jesus, a escolha dos Apóstolos e dos discípulos, a origem de
personagens que passam despercebidos nos evangelhos como os amigos do
paralítico de Cafarnaum, o aleijado da piscina de Siloé, as origens de Simão o
zelota, Jairo, sua filha e sua esposa, etc.
Aliás, um sinal de que
The chosen queria dialogar com a molecada é a escolha dos atores que
interpretam os Apóstolos, discípulos e até mesmo Poncio Pilatos: todos bem
jovens, com aquele jeitão de quem nem precisa fazer a barba, cheios de cabelos
e vitalidade. Que agora os Millenials abram a Bíblia e leiam as fontes.
The chosen bebe nas tradições mais profundas do
cristianismo
Uma coisa que aprendi nas minhas aulas de
catequese era de que a sequência de publicação dos evangelhos era primeiro o de
Mateus, depois Marcos, Lucas e por fim João já pelos fins do séc. I. Mas anos
mais tarde na USP entrei em contato com a moderna exegese bíblica e aí a coisa
complicou, ou como dizem popularmente: o caldo entornou.
A teoria
das formas defende que teriam se passado décadas ou até mesmo séculos até o
surgimento do evangelho de São Mateus, que a tradição situa por volta dos anos
50 a 60 da era cristã. Segundo a mesma teoria o evangelho de Mateus teria
surgido tardiamente, alguns estudiosos localizando sua origem no séc. III, e
sendo assim os demais evangelhos (Marcos, Lucas e João) seriam mais tardios
ainda, havendo assim tempo para que acréscimos apócrifos chamados interpolações contaminassem os relatos
bíblicos com milagres, eventos sobrenaturais ou que atentam contra a física
como caminhar sobre as águas. Ou seja: seriamos incapazes de ler os relatos
primitivos como eles realmente foram pensados!
Pois bem, na série do Netflix São Mateus com cara
de menino passa o tempo todo anotando e coletando “material biográfico” de
Jesus Cristo, o que demonstra que a série segue rigorosamente a datação
sugerida pela tradição, meados do séc. I, para a redação original do primeiro
relato evangélico em aramaico[1].
Outro detalhe que não posso deixar passar é a
personagem Maria Madalena, que aparece logo no primeiro episódio da série como
uma mulher endemoniada que vive bebendo e se alterando diante de homens de má
índole, deixando no ar se ela é apenas uma vitima de possessão demoníaca ou uma
prostituta, como a interpretação de São Gregório Magno no séc. VI dava a
concluir. Essa exegese do grande papa medieval hoje não é mais aceita, mas The
chosen parece se referir a essa
polêmica ao apresentar o personagem.
Por outro lado, a
datação da vida pública de Jesus em The chosen é situada por volta dos
anos 24 a 26 depois de Cristo, ou seja: se Jesus realmente morreu aos 33 anos
de idade, ele na verdade teria nascido por volta do ano 8 a.C. Essa polêmica
com a datação começou também no séc. VI com um monge chamado Dionísio o exíguo
que, ao se basear nos conhecimentos astronômicos de sua época, fixou o ano 1 da
era cristã, datação que ainda hoje é utilizada em boa parte do mundo. Como
podemos perceber, hoje essa datação é contestada e até mesmo nossa série faz
eco dessa discussão.
Vale lembrar que a
existência de Jesus, Poncio Pilatos, da sinagoga de Cafarnaum e outros
personagens bíblicos foi atestada pela moderna arqueologia e por fontes não
cristãs, como os historiadores pagãos Tácito e Suetônio, além do judeu
convertido ao paganismo Flávio Josefo.
The chosen mostra um Jesus descontraído
A série mostra um
Jesus que dá apelidos aos Apóstolos, nada com eles, come, bebe, brinca com as
crianças, e ao mesmo tempo demonstra que ele é o messias esperado pelos judeus.
Um Deus-filho que de longe não parece nada de especial, mas que realiza os milagres
e demonstra com argumentos e fatos que é Deus. Essa é uma das maiores virtudes
de The chosen: a naturalidade que deve ter sido a vida de Jesus na
terra.
Se o leitor chegou até
aqui e riu, mau sinal. Porque na prática o que é o cristianismo senão o
encontro com uma pessoa, Jesus Cristo, Deus que nos amou tanto que se encarnou
como um de nós, exceto no pecado?
The chosen é ecumênico
Por fim mas não menos
importante é destacar que a série tem uma dimensão ecumênica. Nela Jesus não
faz acepção de pessoas, sejam ricos ou pobres, brancos ou negros, intelectuais
ou operários, e a série mostra isso de uma forma bem descontraída. Jesus quer
começar sua pregação pelos judeus, mas sabe que em breve todos os povos e raças
devem ser o alvo de sua mensagem. Isso fica bem evidente no final da terceira
temporada quando Jesus vai pregar na Decápole para judeus helenizados, gregos,
árabes, nabateus e outros, demonstrando a
universalidade/ecumenicidade/catolicidade do cristianismo.
Outro aspecto
ecumênico na série é o apoio de Igrejas protestantes na sua produção. Nos
créditos da terceira temporada aparecem a Igrejas
dos Santos dos Últimos Dias (Mórmons) e o Exército
da Salvação como apoiadores, além dos milhares de doadores anônimos,
católicos, protestantes, indiferentes ou não que doaram seu dinheiro para que a
série fosse produzida.
A aceitação que a
série tem tido entre pessoas de tão diversas denominações cristãs já colocam The
chosen como
um dos grandes acontecimentos ecumênicos do começo do séc. XXI e demonstra que:
o que nos une é maior do que o que nos divide!
Conclusão
Enfim, concluo dizendo que é uma série sem
restrições de idade ou seja lá qual for a segmentação que você quiser criar.
Admito que gostei muito e aguardo em 2024 o quarto ano da série ser exibido no streaming.
[1] Alguns estudiosos argumentam que São Mateus teria escrito originalmente seu evangelho em aramaico e anos ou décadas depois orientado uma tradução para o grego, o que talvez explicasse o porque seu evangelho teria aspectos tardios em sua redação. Aliás, essa questão dos primeiros manuscritos em grego e posteriormente sua tradução para o latim vulgar por São Jeronimo em fins do séc. IV e inícios do séc. V dando origem a Vulgata, tradução oficial da Bíblia católica por mais de mil anos complica exponencialmente as discussões, por isso faço referência dela aqui no rodapé