sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Ainda sobre The chosen (Os escolhidos)/opiniões de um uspiano

 


Olá meus raros leitores! Não resisti e já voltei à carga de notinhas cheias de referencias, citações e comentários indigestos.

Hoje queria dar continuidade a um assunto que abordei na ultima nota e teve reações positivas de amigos e conhecidos: a série da Netflix The chosen (Os escolhidos). Mas porque uma série que trata de um assunto já tantas vezes abordado, pra não dizer batido, tem causado tanto interesse? Coloco aqui alguns apontamentos meus que podem nos dar pistas do segredo dessa série despretensiosa que está empolgando muitos ao contar uma história há tanto tempo conhecida.

The chosen fala para a geração Millenial

Na minha nota anterior (cf:https://teologiadahistoriabrasil.blogspot.com/2024/01/o-que-ando-assistindo-nas-horas-de.html) comentei que The chosen ocupa hoje o papel das biografias e vidas de Jesus escritas nos sécs. XX e começos do XXI. Admito que li a maioria delas com interesse e gosto.

Mas os jovens de hoje não tem dinheiro ou a paciência de ler tomos com centenas de páginas, digressões teológicas, escolas de interpretação bíblicas, formação e origem dos manuscritos bíblicos, fonte Quelle, teoria das formas, Jesus histórico e/ou/versus Cristo da fé, linhagens dos copistas medievais, nouvelle theologie, etc, etc, etc,...

Ok, há aqui um componente de acomodação e preguiça mental, mas isso não diminui o valor de The chosen ao dialogar com essa molecada que assiste na telinha do celular o início da vida pública de Jesus, a escolha dos Apóstolos e dos discípulos, a origem de personagens que passam despercebidos nos evangelhos como os amigos do paralítico de Cafarnaum, o aleijado da piscina de Siloé, as origens de Simão o zelota, Jairo, sua filha e sua esposa, etc.

Aliás, um sinal de que The chosen queria dialogar com a molecada é a escolha dos atores que interpretam os Apóstolos, discípulos e até mesmo Poncio Pilatos: todos bem jovens, com aquele jeitão de quem nem precisa fazer a barba, cheios de cabelos e vitalidade. Que agora os Millenials abram a Bíblia e leiam as fontes.

The chosen bebe nas tradições mais profundas do cristianismo

Uma coisa que aprendi nas minhas aulas de catequese era de que a sequência de publicação dos evangelhos era primeiro o de Mateus, depois Marcos, Lucas e por fim João já pelos fins do séc. I. Mas anos mais tarde na USP entrei em contato com a moderna exegese bíblica e aí a coisa complicou, ou como dizem popularmente: o caldo entornou.

A teoria das formas defende que teriam se passado décadas ou até mesmo séculos até o surgimento do evangelho de São Mateus, que a tradição situa por volta dos anos 50 a 60 da era cristã. Segundo a mesma teoria o evangelho de Mateus teria surgido tardiamente, alguns estudiosos localizando sua origem no séc. III, e sendo assim os demais evangelhos (Marcos, Lucas e João) seriam mais tardios ainda, havendo assim tempo para que acréscimos apócrifos chamados interpolações contaminassem os relatos bíblicos com milagres, eventos sobrenaturais ou que atentam contra a física como caminhar sobre as águas. Ou seja: seriamos incapazes de ler os relatos primitivos como eles realmente foram pensados!

Pois bem, na série do Netflix São Mateus com cara de menino passa o tempo todo anotando e coletando “material biográfico” de Jesus Cristo, o que demonstra que a série segue rigorosamente a datação sugerida pela tradição, meados do séc. I, para a redação original do primeiro relato evangélico em aramaico[1].

Outro detalhe que não posso deixar passar é a personagem Maria Madalena, que aparece logo no primeiro episódio da série como uma mulher endemoniada que vive bebendo e se alterando diante de homens de má índole, deixando no ar se ela é apenas uma vitima de possessão demoníaca ou uma prostituta, como a interpretação de São Gregório Magno no séc. VI dava a concluir. Essa exegese do grande papa medieval hoje não é mais aceita, mas The chosen parece se referir a essa polêmica ao apresentar o personagem.

Por outro lado, a datação da vida pública de Jesus em The chosen é situada por volta dos anos 24 a 26 depois de Cristo, ou seja: se Jesus realmente morreu aos 33 anos de idade, ele na verdade teria nascido por volta do ano 8 a.C. Essa polêmica com a datação começou também no séc. VI com um monge chamado Dionísio o exíguo que, ao se basear nos conhecimentos astronômicos de sua época, fixou o ano 1 da era cristã, datação que ainda hoje é utilizada em boa parte do mundo. Como podemos perceber, hoje essa datação é contestada e até mesmo nossa série faz eco dessa discussão.

Vale lembrar que a existência de Jesus, Poncio Pilatos, da sinagoga de Cafarnaum e outros personagens bíblicos foi atestada pela moderna arqueologia e por fontes não cristãs, como os historiadores pagãos Tácito e Suetônio, além do judeu convertido ao paganismo Flávio Josefo.

The chosen mostra um Jesus descontraído

A série mostra um Jesus que dá apelidos aos Apóstolos, nada com eles, come, bebe, brinca com as crianças, e ao mesmo tempo demonstra que ele é o messias esperado pelos judeus. Um Deus-filho que de longe não parece nada de especial, mas que realiza os milagres e demonstra com argumentos e fatos que é Deus. Essa é uma das maiores virtudes de The chosen: a naturalidade que deve ter sido a vida de Jesus na terra.

Se o leitor chegou até aqui e riu, mau sinal. Porque na prática o que é o cristianismo senão o encontro com uma pessoa, Jesus Cristo, Deus que nos amou tanto que se encarnou como um de nós, exceto no pecado?

The chosen é ecumênico

Por fim mas não menos importante é destacar que a série tem uma dimensão ecumênica. Nela Jesus não faz acepção de pessoas, sejam ricos ou pobres, brancos ou negros, intelectuais ou operários, e a série mostra isso de uma forma bem descontraída. Jesus quer começar sua pregação pelos judeus, mas sabe que em breve todos os povos e raças devem ser o alvo de sua mensagem. Isso fica bem evidente no final da terceira temporada quando Jesus vai pregar na Decápole para judeus helenizados, gregos, árabes, nabateus e outros, demonstrando a universalidade/ecumenicidade/catolicidade do cristianismo.

Outro aspecto ecumênico na série é o apoio de Igrejas protestantes na sua produção. Nos créditos da terceira temporada aparecem a Igrejas dos Santos dos Últimos Dias (Mórmons) e o Exército da Salvação como apoiadores, além dos milhares de doadores anônimos, católicos, protestantes, indiferentes ou não que doaram seu dinheiro para que a série fosse produzida.

A aceitação que a série tem tido entre pessoas de tão diversas denominações cristãs já colocam The chosen como um dos grandes acontecimentos ecumênicos do começo do séc. XXI e demonstra que: o que nos une é maior do que o que nos divide!

Conclusão

Enfim, concluo dizendo que é uma série sem restrições de idade ou seja lá qual for a segmentação que você quiser criar. Admito que gostei muito e aguardo em 2024 o quarto ano da série ser exibido no streaming.



[1] Alguns estudiosos argumentam que São Mateus teria escrito originalmente seu evangelho em aramaico e anos ou décadas depois orientado uma tradução para o grego, o que talvez explicasse o porque seu evangelho teria aspectos tardios em sua redação. Aliás, essa questão dos primeiros manuscritos em grego e posteriormente sua tradução para o latim vulgar por São Jeronimo em fins do séc. IV e inícios do séc. V dando origem a Vulgata, tradução oficial da Bíblia católica por mais de mil anos complica exponencialmente as discussões, por isso faço referência dela aqui no rodapé

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