Os
trechos por mim escritos abaixo foram produzidos em 2010, no contexto da minha
tese de doutorado onde, entre outros assuntos, toquei na história da Santa
Generosa e da paróquia a ela dedicada no bairro do Paraíso, cidade de São Paulo.
Realizei apenas algumas modificações, como indicar o título de Monsenhor
(capelão do papa) dado a Jose Mayer Paine após a conclusão da minha pesquisa,
além de indicar seu falecimento em 2018 e acrescentar algumas atualizações na
parte final do texto. Do resto está tudo como eu escrevi em 2010. Espero que
gostem.
Infelizmente
uma paróquia com quase 100 anos de vida como S. Generosa ainda não teve sua
história escrita. Tive que me valer de boletins paroquiais que estavam em meu
poder, dos anos de 1999-2009. O uso dos boletins acarreta uma série de
problemas com relação à objetividade e idoneidade dos dados informados por Monsenhor
José Mayer Paine que reiteradamente consultou e recontou fatos relacionados à
igreja, muitos presenciados por ele, e os inseriu na História de nossa paróquia (coluna regular dos boletins). Assim
devemos ver diversos fatos aqui descritos como testemunhos pessoais baseados em
documentos de arquivo.
Antes
de mais nada, por que a igreja se chama S. Generosa? Devido a homenagem dada a
mãe do vigário geral da Arquidiocese em 1915, ano de criação da paróquia. O
decreto de criação da paróquia afirmava que ela originalmente seria denominada Paróquia de Vila Mariana, sob a égide de
S. Generosa:
“(...)
em homenagem a Sra. Generosa Liberal Pinto, de importante e tradicional família
paulistana, mãe de D. Gastão Liberal Pinto, vigário geral da arquidiocese e,
posteriormente, Bispo de São Carlos”[1].
Ou
seja, S. Generosa – a paróquia nasceu antes mesmo de se saber ao certo quem era
sua padroeira. Mas quem foi S. Generosa?
Infelizmente
existem poucas informações a respeito de S. Generosa, a mártir, até mesmo de
sua terra de origem. É difícil dizer com exatidão os limites da província
romana da Numídia, que hoje
abrangeria territórios da Tunísia e da Argélia. O que sabemos é que por volta
do ano 180 d. C já havia cristãos na região de Cartago, norte da África.
Podemos concluir isso da Ata dos mártires
de Scili, considerado um dos mais autênticos relatos de martírio da
antiguidade cristã.
Brevemente
devemos tratar do complexo tema do culto imperial na Roma antiga e sua
conflituosa relação com os cristãos. O choque entre a universalidade da
mensagem cristã derivada do monoteísmo judaico e o politeísmo oficial do
Império Romano que além de oferecer um amplo leque de divindades abria espaço
para a possibilidade de se cultuar novas divindades das diversas províncias
desde que esse novo culto permitisse o culto oficial ao Imperador de Roma, Pontifex Maximus, em determinadas
ocasiões. Essa curiosa pluralidade religiosa era representada pelo Pantheón,
edifício onde havia altares para todos os deuses, até mesmo os desconhecidos.
Segundo o que podemos ler em At. 17, 23[2] as diversas cidades do
Império possuíam altares e locais similares.
Com
o radicalismo da mensagem cristã fica fácil entender que os cristãos eram
acusados de ateísmo e desobediência civil, já que sua prática os segregava da
maioria da população pagã, e os via como potenciais desordeiros, pois além de
ignorarem o culto oficial o cristianismo aceitava em suas fileiras homens e
mulheres de todas as condições: meretrizes, escravos, libertos, crianças,
velhos, pobres, ricos, doentes, etc. Era nesse contexto que Santa Generosa foi
presa, julgada e executada. O episódio do martírio teria ocorrido assim:
Um
grupo de cristãos teria sido denunciado pelo crime de “Lesa majestade divina”
por não terem cultuado a imagem do imperador de Roma. Diante do juiz eles não
temeram a pena de morte, e repetidamente confessaram sua fé cristã, até que:
O
pro cônsul Saturnino mandou então anunciar pelo arauto: ‘Mando que conduzam ao
suplício Esperato, Natzalo, Citino, Vetúrio, Aquilino, Lactâncio, Januária, Generosa, Véstia, Donata e Secunda’.
Todos
– Graças a Deus[3].
Apenas
a referência do nome nos indica que a mártir existiu. Existem mais paróquias
dedicadas à santa mártir. Além de uma basílica na Itália, existe uma capela na
Espanha, a Capela de Santa Generosa na igreja
arciprestal de San Pedro y San Pablo de Ademuz - Valencia, Espanha. Haveria
também em Roma, na Ig. S. Gioacchino ai
Prati uma capela em honra a Santa Generosa.
Essa
lacuna na biografia de S. Generosa cria um problema particularmente grave
referente a devoção popular: ela não é palpável, não se sabe se viveu as
agruras do cotidiano, e nem mesmo qual foi o meio usado para supliciá-la. Assim
a devoção popular não pode trabalhar a imagem da santa no sentido de se criar
uma empatia em torno de pedidos concretos como o que ocorre com S. Judas Tadeu
(Causas impossíveis), S. Rita de Cássia (Desesperados), e menos ainda com os
chamados “Santos canonizados pelo povo” como S. Antoninho da Rocha Marmo, as 13 almas do Edifício Joelma,
santificados pelo catolicismo popular por terem experimentado agruras durante
suas vidas terrenas como fome, sofrimentos de queimaduras, agressões,
violências físicas ou morais. O fato de uma pessoa ser canonizada pela
Instituição Católica não significa que a devoção a ele ou ela será popular[4].
No
altar principal da igreja paulistana existe uma imagem similar a da estampa. A
paróquia até hoje possui uma relíquia autêntica de osso de Santa Generosa:
[...]
trazida de Roma, com o respectivo documento de sua autenticidade, ‘pelos bons
ofícios do Revdo. Pe. Francisco Freire de Moura filho, Capelão Militar da Força
Expedicionária Brasileira, quando da 2ª Guerra mundial[5].
Entrada da atual igreja. Edison Minami. 07-2009.
Do lado esquerdo da foto está a secretaria paroquial, onde estão guardados os Livros de Tombo, e a direita o painel de avisos e a porta da sala do pároco.
Origens da paróquia
De
acordo com os boletins paroquiais, há uma pré-história da paróquia. No dia
21/02/1890 o então bispo de S. Paulo D. Lino Deodato teria recebido um
requerimento para transformar em igreja matriz uma capela no bairro de Vila
Mariana. Anos depois, em 27/04/1912 teria sido formada uma comissão de membros
encarregada das obras para a criação da Ig. Matriz no bairro. Finalmente, no
dia 04/04/1915 foi criada a paróquia por ordem do então cardeal D. Duarte
Leopoldo e Silva, no antigo largo Guanabara. Seu primeiro pároco foi Mons.
Marcelo Franco, que assumiu a paróquia quatro dias depois (08/04/1915). Ao
longo desses anos sua área foi bastante reduzida. Até o ano de 1915, conforme
falamos acima havia apenas uma pequena capela em honra a mártir.
Em 1924 era oficialmente inaugurada a nova Igreja Matriz de Santa Generosa, que seria sucessivamente ampliada até fins dos anos sessenta. Mas em 1943 Cônego Pedro Gomes, 2° vigário da paróquia, recebeu um comunicado da Prefeitura de São Paulo dizendo que em razão das obras de urbanização da cidade a igreja deveria ser desapropriada. Em vista disso Côn. Pedro paralisou as obras de ampliação que somente seriam retomadas anos depois. Em 1948 tendo tomado posse o 3° vigário, Cônego Alberto Baccili reiniciou as obras, inaugurando uma nova igreja em 1950.
Em
06 de fevereiro de 1955 tomou posse como pároco Monsenhor José Mayer Paine.
Nesse mesmo ano de 1955 saiu o primeiro folheto – jornal da paróquia com uma
periodicidade mais ou menos regular até hoje. Em maio de 1968 o boletim A paróquia de Santa Generosa foi o
primeiro a publicar em português as partes móveis da missa, seguindo as novas
determinações do Vaticano II. Somente em 1993, por determinação do então
Cardeal Arns, o folheto O povo de Deus
Em
Fotos 09 e 10: Demolição da antiga igreja.
No local da antiga igreja foram feitas uma praça e acessos da atual estação Paraíso do Metrô.
Monsenhor Paine reiteradamente referia-se ao episódio da demolição da antiga igreja como uma grande provação dada a ele por Deus. Todos os anos ele repetia sua versão dos fatos, em especial durante as solenidades da padroeira (17/07) ou nas datas referentes a acontecimentos referentes a ele, como seu aniversário, ordenação, eleição para pároco, entre outros. Os boletins cumpriam a missão de resgatar a memória do esquecimento, de mostrar aos novos paroquianos que a história da igreja confunde-se com a de sua padroeira. Assim como Santa Generosa recusou-se a prestar o culto ao Imperador romano e morreu por isso, a Ig. de S. Generosa poderia ter escolhido um caminho mais fácil e de menos sofrimento, mas não o quis. O monsenhor, excelente arquivista, procurava manter a história da paróquia viva na memória de todos.
Uma
pequena historieta ilustra bem isso. Nos primeiros estágios desta pesquisa,
fomos ao Arquivo Metropolitano da Cúria
de São Paulo, na Av. Nazaré 993, Ipiranga – S.P. Conversamos com o diretor
do Arquivo e explicamos os objetivos de nosso trabalho. Quando falamos que
havíamos procurado o cônego Paine sobre liberação de documentação, ele (o
diretor) nos falou que éramos privilegiados, já que o cônego nunca havia
liberado documentação para o Arquivo da Cúria, apesar da insistência da
diretoria do arquivo. Posteriormente comentamos com um dos funcionários da igreja
o ocorrido, e esse funcionário nos falou que o cônego vê nos arquivos da
paróquia a prova de anos e anos de sofrimentos em prol da paróquia e da Igreja.
De fato, pelo menos no que se refere a atas matrimoniais podemos atestar que
estão guardados todos os processos de casamentos desde 1915 no arquivo morto em
perfeita ordem e estado de conservação, apenas esperando o dia em que serão
estudados. No presente momento (08/2010) está em andamento um trabalho de
limpeza, restauração, nova encadernação e reorganização do arquivo morto da
paróquia.
Placa originalmente existente no viaduto S. Generosa,
colocada após a demolição da igreja e furtada pouco depois.
Voltando a história da paróquia, em 27/09/1970 o Cardeal D. Agnelo Rossi inaugurou a atual igreja, celebrando a primeira missa no novo templo. Ainda hoje muitos objetos, móveis, lustres, objetos de culto, que sobreviveram à demolição da antiga igreja, são utilizados ou estão guardados em um pequeno museu dentro da igreja. Nos anos seguintes, mais e mais melhorias foram sendo acrescentadas: enfermaria, cozinhas, dispensa (para a distribuição de cestas básicas para os pobres), salões de festas. Podemos dividir os diversos paroquiatos do seguinte modo:
1° Vigário - Mons. Marcello Franco
08/04/1915 a 06/05/1932
2°
Vigário: Mons. Pedro Gomes 25/06/1932 a 28/12/1947
3° Vigário: Côn. Alberto Baccili
01/01/1948 a 31/01/1955
4º
Vigário: Côn. José Mayer Paine 06/02/1955 a 24/09/2017
5º
Vigário: Pe. Cássio Carvalho (Até 2017, auxiliar. A partir de 2017 pároco).
Segundo
informações extraídas do Boletim Paroquial, até o ano de 1999, 58 sacerdotes e
três diáconos exerceram suas funções
Hoje
raros são os transeuntes que percebem a pequena entrada da igreja, espremida
entre uma oficina de balanceamento de pneus, uma loja de camas, uma doceria e
uma rádio (rádio Capital) de um lado,
e um terreno murado e um prédio do outro. Desses raros espectadores,
pouquíssimos percebem os dizeres em latim na fachada da igreja: Deo in honorem Beatae Generosae, ou
entram para uma visita, já que as portas de vai e vem criam a ilusão de que a
igreja vive fechada. E aqueles privilegiados que param para admirar talvez não
desconfiem da história longa de suas fachadas.
Próxima do “Centro Velho” da cidade de São Paulo, a paróquia se encontra em uma das regiões mais movimentadas da metrópole. Sendo o seu endereço (Av. Bernardino de Campos) uma extensão da Av. Paulista e cruzando a Av. 23 de maio pelo seu viaduto, o tráfego de carros é intenso o dia todo, chegando a atrapalhar a celebração de missas. Por isso a necessidade das portas de vai e vem. Procissões e outros atos externos se veem prejudicados pelas buzinas apressadas de quem não entende ou não quer entender o que se passa.
Epílogo
Em
2015 a Paróquia de Santa Generosa completou um século de vida, e nós
paroquianos nos organizamos para prestigiar essa data tão especial. Contando com
a presença de d. Odilo Scherer, cardeal arcebispo de São Paulo, a igreja
finalmente foi consagrada, algo que não havia ocorrido em 1970 devido as circunstâncias
acima explicadas.
Um
pouco antes disso já atuava na paróquia Pe. Cássio, atual pároco de Santa Generosa,
continuando a atuar incansavelmente pelo bem dos fiéis, celebrando e
confessando, além de realizar diversas atividades sociais e caritativas, e o
atendimento aos enfermos de oito hospitais que estão localizados na área, além
do Hospital Dante Pazzanezzi. Essa atividade prodigiosa não foi interrompida
nem mesmo pela pandemia do coronavírus que grassa no Brasil desde começos de
2020. Aqui deixo registrado meu profundo agradecimento a Pe. Cássio.
Que
Santa Generosa continue a interceder por nós do Céu, juntamente com tantos
padres e paroquianos que nestes mais de cem anos marcaram a história dessa comunidade
encravada no coração da cidade de São Paulo.
[1]
A paróquia de Santa Generosa. Ano XL,
No. 1460, Abril de 1999.
[2]
“Percorrendo a vossa cidade [Atenas] e examinando os vossos monumentos
sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: ao Deus desconhecido. Pois
bem! O que venerais sem conhecer, é que eu vos anuncio”. Essa passagem faz
parte de um discurso maior de São Paulo apóstolo, parte de um formato primitivo
de catequese aos pagãos. O resultado foi decepcionante: os atenienses fizeram
troça das palavras de Paulo.
[3]
In: ROPS, Daniel. A Igreja dos apóstolos
e dos mártires. Vol. I. São Paulo, Quadrante. 1989. p. 184-185. O Grifo é
de minha autoria.
[4]
Para mais informações, recomendo: FAUSTINO, Evandro. O renitente catolicismo popular. São Paulo, FFLCH-USP. 1996. Tese
de doutorado.
[5]
A paróquia de Santa Generosa. Ano
XXX, No. 1348, Julho de 1999.
[6]
A paróquia de Santa Generosa. Ano
XXX, No. 1345, Abril de 1999.
[7]
Por exemplo, o Sr. Sydney Coelho (†09/2017), de quem colhemos esse depoimento.
[8]
O atual papa Bento XVI restaurou o uso dessa liturgia para alguns grupos
conservadores que se recusavam a adotar a missa
[9]
A paróquia de Santa Generosa. Ano
XXXII, No. 1356, Abril de 2000.
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