quinta-feira, 15 de julho de 2021

Breve apresentação de Santa Generosa e da paróquia a ela dedicada

Os trechos por mim escritos abaixo foram produzidos em 2010, no contexto da minha tese de doutorado onde, entre outros assuntos, toquei na história da Santa Generosa e da paróquia a ela dedicada no bairro do Paraíso, cidade de São Paulo. Realizei apenas algumas modificações, como indicar o título de Monsenhor (capelão do papa) dado a Jose Mayer Paine após a conclusão da minha pesquisa, além de indicar seu falecimento em 2018 e acrescentar algumas atualizações na parte final do texto. Do resto está tudo como eu escrevi em 2010. Espero que gostem.

 

Infelizmente uma paróquia com quase 100 anos de vida como S. Generosa ainda não teve sua história escrita. Tive que me valer de boletins paroquiais que estavam em meu poder, dos anos de 1999-2009. O uso dos boletins acarreta uma série de problemas com relação à objetividade e idoneidade dos dados informados por Monsenhor José Mayer Paine que reiteradamente consultou e recontou fatos relacionados à igreja, muitos presenciados por ele, e os inseriu na História de nossa paróquia (coluna regular dos boletins). Assim devemos ver diversos fatos aqui descritos como testemunhos pessoais baseados em documentos de arquivo.

Antes de mais nada, por que a igreja se chama S. Generosa? Devido a homenagem dada a mãe do vigário geral da Arquidiocese em 1915, ano de criação da paróquia. O decreto de criação da paróquia afirmava que ela originalmente seria denominada Paróquia de Vila Mariana, sob a égide de S. Generosa:

“(...) em homenagem a Sra. Generosa Liberal Pinto, de importante e tradicional família paulistana, mãe de D. Gastão Liberal Pinto, vigário geral da arquidiocese e, posteriormente, Bispo de São Carlos”[1].

Ou seja, S. Generosa – a paróquia nasceu antes mesmo de se saber ao certo quem era sua padroeira. Mas quem foi S. Generosa?

 Os mártires de Scili, perto de Cartago na Numídia romana (séc. II)

Infelizmente existem poucas informações a respeito de S. Generosa, a mártir, até mesmo de sua terra de origem. É difícil dizer com exatidão os limites da província romana da Numídia, que hoje abrangeria territórios da Tunísia e da Argélia. O que sabemos é que por volta do ano 180 d. C já havia cristãos na região de Cartago, norte da África. Podemos concluir isso da Ata dos mártires de Scili, considerado um dos mais autênticos relatos de martírio da antiguidade cristã.

Brevemente devemos tratar do complexo tema do culto imperial na Roma antiga e sua conflituosa relação com os cristãos. O choque entre a universalidade da mensagem cristã derivada do monoteísmo judaico e o politeísmo oficial do Império Romano que além de oferecer um amplo leque de divindades abria espaço para a possibilidade de se cultuar novas divindades das diversas províncias desde que esse novo culto permitisse o culto oficial ao Imperador de Roma, Pontifex Maximus, em determinadas ocasiões. Essa curiosa pluralidade religiosa era representada pelo Pantheón, edifício onde havia altares para todos os deuses, até mesmo os desconhecidos. Segundo o que podemos ler em At. 17, 23[2] as diversas cidades do Império possuíam altares e locais similares.

Com o radicalismo da mensagem cristã fica fácil entender que os cristãos eram acusados de ateísmo e desobediência civil, já que sua prática os segregava da maioria da população pagã, e os via como potenciais desordeiros, pois além de ignorarem o culto oficial o cristianismo aceitava em suas fileiras homens e mulheres de todas as condições: meretrizes, escravos, libertos, crianças, velhos, pobres, ricos, doentes, etc. Era nesse contexto que Santa Generosa foi presa, julgada e executada. O episódio do martírio teria ocorrido assim:

Um grupo de cristãos teria sido denunciado pelo crime de “Lesa majestade divina” por não terem cultuado a imagem do imperador de Roma. Diante do juiz eles não temeram a pena de morte, e repetidamente confessaram sua fé cristã, até que:

O pro cônsul Saturnino mandou então anunciar pelo arauto: ‘Mando que conduzam ao suplício Esperato, Natzalo, Citino, Vetúrio, Aquilino, Lactâncio, Januária, Generosa, Véstia, Donata e Secunda’.

Todos – Graças a Deus[3].

Apenas a referência do nome nos indica que a mártir existiu. Existem mais paróquias dedicadas à santa mártir. Além de uma basílica na Itália, existe uma capela na Espanha, a Capela de Santa Generosa na igreja arciprestal de San Pedro y San Pablo de Ademuz - Valencia, Espanha. Haveria também em Roma, na Ig. S. Gioacchino ai Prati uma capela em honra a Santa Generosa.

Essa lacuna na biografia de S. Generosa cria um problema particularmente grave referente a devoção popular: ela não é palpável, não se sabe se viveu as agruras do cotidiano, e nem mesmo qual foi o meio usado para supliciá-la. Assim a devoção popular não pode trabalhar a imagem da santa no sentido de se criar uma empatia em torno de pedidos concretos como o que ocorre com S. Judas Tadeu (Causas impossíveis), S. Rita de Cássia (Desesperados), e menos ainda com os chamados “Santos canonizados pelo povo” como S. Antoninho da Rocha Marmo, as 13 almas do Edifício Joelma, santificados pelo catolicismo popular por terem experimentado agruras durante suas vidas terrenas como fome, sofrimentos de queimaduras, agressões, violências físicas ou morais. O fato de uma pessoa ser canonizada pela Instituição Católica não significa que a devoção a ele ou ela será popular[4].

Anfiteatro dos mártires – Cartago, Tunísia.
Santa Generosa - †180 d. C.

No altar principal da igreja paulistana existe uma imagem similar a da estampa. A paróquia até hoje possui uma relíquia autêntica de osso de Santa Generosa:

[...] trazida de Roma, com o respectivo documento de sua autenticidade, ‘pelos bons ofícios do Revdo. Pe. Francisco Freire de Moura filho, Capelão Militar da Força Expedicionária Brasileira, quando da 2ª Guerra mundial[5].

Atual igreja. Edison Minami. 03-2007.

Entrada da atual igreja. Edison Minami. 07-2009.

Do lado esquerdo da foto está a secretaria paroquial, onde estão guardados os Livros de Tombo, e a direita o painel de avisos e a porta da sala do pároco.

Origens da paróquia

De acordo com os boletins paroquiais, há uma pré-história da paróquia. No dia 21/02/1890 o então bispo de S. Paulo D. Lino Deodato teria recebido um requerimento para transformar em igreja matriz uma capela no bairro de Vila Mariana. Anos depois, em 27/04/1912 teria sido formada uma comissão de membros encarregada das obras para a criação da Ig. Matriz no bairro. Finalmente, no dia 04/04/1915 foi criada a paróquia por ordem do então cardeal D. Duarte Leopoldo e Silva, no antigo largo Guanabara. Seu primeiro pároco foi Mons. Marcelo Franco, que assumiu a paróquia quatro dias depois (08/04/1915). Ao longo desses anos sua área foi bastante reduzida. Até o ano de 1915, conforme falamos acima havia apenas uma pequena capela em honra a mártir.


        Em 1924 era oficialmente inaugurada a nova Igreja Matriz de Santa Generosa, que seria sucessivamente ampliada até fins dos anos sessenta. Mas em 1943 Cônego Pedro Gomes, 2° vigário da paróquia, recebeu um comunicado da Prefeitura de São Paulo dizendo que em razão das obras de urbanização da cidade a igreja deveria ser desapropriada. Em vista disso Côn. Pedro paralisou as obras de ampliação que somente seriam retomadas anos depois. Em 1948 tendo tomado posse o 3° vigário, Cônego Alberto Baccili reiniciou as obras, inaugurando uma nova igreja em 1950.

Em 06 de fevereiro de 1955 tomou posse como pároco Monsenhor José Mayer Paine. Nesse mesmo ano de 1955 saiu o primeiro folheto – jornal da paróquia com uma periodicidade mais ou menos regular até hoje. Em maio de 1968 o boletim A paróquia de Santa Generosa foi o primeiro a publicar em português as partes móveis da missa, seguindo as novas determinações do Vaticano II. Somente em 1993, por determinação do então Cardeal Arns, o folheto O povo de Deus em São Paulo foi adotado na Paróquia, deixando o Boletim de publicar o missal[6]. O cônego, bastante conhecido pela sua obediência aos superiores – no caso o cardeal arcebispo – aceitou sem reclamações, embora ainda hoje possamos encontrar paroquianos antigos[7] que lembram que até esse ano a igreja adotava a liturgia de São Pio V[8].

Em 1967 a Prefeitura decidiu desapropriar e demolir a igreja devido às obras de construção do metrô. A atual igreja foi construída onde era o salão e a casa paroquial, na rua Afonso de Freitas, 49. Durante o tempo em que estava sendo construída a nova igreja a Paróquia de Santa Generosa funcionou na capela do Colégio Maria Imaculada, próximo a Av. Paulista.

Fotos 09 e 10: Demolição da antiga igreja.

No local da antiga igreja foram feitas uma praça e acessos da atual estação Paraíso do Metrô.

Monsenhor Paine reiteradamente referia-se ao episódio da demolição da antiga igreja como uma grande provação dada a ele por Deus. Todos os anos ele repetia sua versão dos fatos, em especial durante as solenidades da padroeira (17/07) ou nas datas referentes a acontecimentos referentes a ele, como seu aniversário, ordenação, eleição para pároco, entre outros. Os boletins cumpriam a missão de resgatar a memória do esquecimento, de mostrar aos novos paroquianos que a história da igreja confunde-se com a de sua padroeira. Assim como Santa Generosa recusou-se a prestar o culto ao Imperador romano e morreu por isso, a Ig. de S. Generosa poderia ter escolhido um caminho mais fácil e de menos sofrimento, mas não o quis. O monsenhor, excelente arquivista, procurava manter a história da paróquia viva na memória de todos.

Uma pequena historieta ilustra bem isso. Nos primeiros estágios desta pesquisa, fomos ao Arquivo Metropolitano da Cúria de São Paulo, na Av. Nazaré 993, Ipiranga – S.P. Conversamos com o diretor do Arquivo e explicamos os objetivos de nosso trabalho. Quando falamos que havíamos procurado o cônego Paine sobre liberação de documentação, ele (o diretor) nos falou que éramos privilegiados, já que o cônego nunca havia liberado documentação para o Arquivo da Cúria, apesar da insistência da diretoria do arquivo. Posteriormente comentamos com um dos funcionários da igreja o ocorrido, e esse funcionário nos falou que o cônego vê nos arquivos da paróquia a prova de anos e anos de sofrimentos em prol da paróquia e da Igreja. De fato, pelo menos no que se refere a atas matrimoniais podemos atestar que estão guardados todos os processos de casamentos desde 1915 no arquivo morto em perfeita ordem e estado de conservação, apenas esperando o dia em que serão estudados. No presente momento (08/2010) está em andamento um trabalho de limpeza, restauração, nova encadernação e reorganização do arquivo morto da paróquia.

Placa originalmente existente no viaduto S. Generosa,

colocada após a demolição da igreja e furtada pouco depois.

Voltando a história da paróquia, em 27/09/1970 o Cardeal D. Agnelo Rossi inaugurou a atual igreja, celebrando a primeira missa no novo templo. Ainda hoje muitos objetos, móveis, lustres, objetos de culto, que sobreviveram à demolição da antiga igreja, são utilizados ou estão guardados em um pequeno museu dentro da igreja. Nos anos seguintes, mais e mais melhorias foram sendo acrescentadas: enfermaria, cozinhas, dispensa (para a distribuição de cestas básicas para os pobres), salões de festas. Podemos dividir os diversos paroquiatos do seguinte modo:

1° Vigário - Mons. Marcello Franco 08/04/1915 a 06/05/1932

2° Vigário: Mons. Pedro Gomes 25/06/1932 a 28/12/1947

3° Vigário: Côn. Alberto Baccili 01/01/1948 a 31/01/1955

4º Vigário: Côn. José Mayer Paine 06/02/1955 a 24/09/2017

5º Vigário: Pe. Cássio Carvalho (Até 2017, auxiliar. A partir de 2017 pároco).

Segundo informações extraídas do Boletim Paroquial, até o ano de 1999, 58 sacerdotes e três diáconos exerceram suas funções em Santa Generosa, entre eles 10 vigários paroquiais (coadjutores) e 44 auxiliares[9].

Hoje raros são os transeuntes que percebem a pequena entrada da igreja, espremida entre uma oficina de balanceamento de pneus, uma loja de camas, uma doceria e uma rádio (rádio Capital) de um lado, e um terreno murado e um prédio do outro. Desses raros espectadores, pouquíssimos percebem os dizeres em latim na fachada da igreja: Deo in honorem Beatae Generosae, ou entram para uma visita, já que as portas de vai e vem criam a ilusão de que a igreja vive fechada. E aqueles privilegiados que param para admirar talvez não desconfiem da história longa de suas fachadas.


Painel existente na entrada da igreja sobre sua história. Julho de 2009. Edison Minami.

Próxima do “Centro Velho” da cidade de São Paulo, a paróquia se encontra em uma das regiões mais movimentadas da metrópole. Sendo o seu endereço (Av. Bernardino de Campos) uma extensão da Av. Paulista e cruzando a Av. 23 de maio pelo seu viaduto, o tráfego de carros é intenso o dia todo, chegando a atrapalhar a celebração de missas. Por isso a necessidade das portas de vai e vem. Procissões e outros atos externos se veem prejudicados pelas buzinas apressadas de quem não entende ou não quer entender o que se passa.

Epílogo

Em 2015 a Paróquia de Santa Generosa completou um século de vida, e nós paroquianos nos organizamos para prestigiar essa data tão especial. Contando com a presença de d. Odilo Scherer, cardeal arcebispo de São Paulo, a igreja finalmente foi consagrada, algo que não havia ocorrido em 1970 devido as circunstâncias acima explicadas.

26/04/2015: Consagração da igreja de Santa Generosa. No centro da foto, da esquerda para a direita, Mons. Paine, Cardeal D. Odilo Scherer, e Mons Vicente Ancona.

Em 2017, dois acontecimentos dignos de nota: José Mayer Paine recebe o título de Monsenhor (capelão do Papa), e a entrega do seu cargo após mais de sessenta e dois anos de serviços incontáveis prestados a Igreja. Em 26/02/2018, após meses internado na UTI do hospital Beneficência Portuguesa, Monsenhor Paine ganha o céu. É o seu Dies natalis.

Um pouco antes disso já atuava na paróquia Pe. Cássio, atual pároco de Santa Generosa, continuando a atuar incansavelmente pelo bem dos fiéis, celebrando e confessando, além de realizar diversas atividades sociais e caritativas, e o atendimento aos enfermos de oito hospitais que estão localizados na área, além do Hospital Dante Pazzanezzi. Essa atividade prodigiosa não foi interrompida nem mesmo pela pandemia do coronavírus que grassa no Brasil desde começos de 2020. Aqui deixo registrado meu profundo agradecimento a Pe. Cássio.

Que Santa Generosa continue a interceder por nós do Céu, juntamente com tantos padres e paroquianos que nestes mais de cem anos marcaram a história dessa comunidade encravada no coração da cidade de São Paulo.



[1] A paróquia de Santa Generosa. Ano XL, No. 1460, Abril de 1999.

[2] “Percorrendo a vossa cidade [Atenas] e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: ao Deus desconhecido. Pois bem! O que venerais sem conhecer, é que eu vos anuncio”. Essa passagem faz parte de um discurso maior de São Paulo apóstolo, parte de um formato primitivo de catequese aos pagãos. O resultado foi decepcionante: os atenienses fizeram troça das palavras de Paulo.

[3] In: ROPS, Daniel. A Igreja dos apóstolos e dos mártires. Vol. I. São Paulo, Quadrante. 1989. p. 184-185. O Grifo é de minha autoria.

[4] Para mais informações, recomendo: FAUSTINO, Evandro. O renitente catolicismo popular. São Paulo, FFLCH-USP. 1996. Tese de doutorado.

[5] A paróquia de Santa Generosa. Ano XXX, No. 1348, Julho de 1999.

[6] A paróquia de Santa Generosa. Ano XXX, No. 1345, Abril de 1999.

[7] Por exemplo, o Sr. Sydney Coelho (†09/2017), de quem colhemos esse depoimento.

[8] O atual papa Bento XVI restaurou o uso dessa liturgia para alguns grupos conservadores que se recusavam a adotar a missa em vernáculo. Através do Motu próprio Summorum pontificium, de 07/07/2007 a missa Tridentina ou de S. Pio V pode ser novamente celebrada. Em São Paulo capital duas igrejas celebram regularmente missas “em Latim”: Ig. Menino Jesus e Santa Luzia (R. Tabatinguera 104), e a Ig. Nsa. Sra. da Boa Morte (R. Tabatinguera 301). Segundo soubemos através de contato telefônico, nos finais de semana essas missas são muito frequentadas, por católicos conservadores ou não, e até mesmo simples curiosos.

[9] A paróquia de Santa Generosa. Ano XXXII, No. 1356, Abril de 2000.


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