(Escrevi essa provocativa postagem originalmente em 2015 na minha página no Facebook (Cf.: https://www.facebook.com/vaticanoiibrasil/photos/a.267020246734720/541229779313764 Acessado às 17:06hs do dia 02/07/2021) logo após a leitura do livro O mínimo que você deve precisa saber para não ser um idiota, coletânea de artigos do jornalista, ensaísta e polemista Olavo de Carvalho. Na edição eu eu li, a certa altura, Olavo teceu uma série de perguntas aos historiadores, e como o compilador do livro não juntou uma eventual resposta, eu provocativamente me imaginei respondendo aos seus questionamentos. Hoje eu reformularia algumas respostas. Ainda bem! Porque o pensamento nunca está cristalizado, sinal de saúde mental e reconhecimento de que estamos sempre mudando de opinião, reconhecendo erros e mudanças de direção. Enquanto vivermos na terra, seremos seres imersos no tempo, criaturas simultaneamente espirituais e materiais, daí a nossa provisoriedade).
Ao
ler o livro “O mínimo que você deve saber para não ser um idiota”, deparei-me
com algumas perguntas na parte referente a “Estudo”. Sintomaticamente é a parte
final do livro onde Olavo de Carvalho lança um ataque aos intelectuais uspianos
“socialistas”, “petistas”, entre outros epítetos. E lá pelas tantas, ele coloca
essas seis perguntas aos historiadores uspianos.
Quem
é católico já ouviu falar que a USP é na verdade a “casa das trevas”, o berço
do marxismo brasileiro, do PT, do PSTU, PSOL e PCO, onde o CA (Centro Acadêmico) do departamento de história sempre começa e
termina as greves e invasões-depredações da reitoria...
O
livro “O mínimo...” apresenta uma estrutura cíclica onde as ideias olavianas
vão e voltam, cada vez mais intrincadas. Méritos de Felipe Moura Brasil,
discípulo e organizador da coletânea de artigos e de varias das notas de final
de texto presentes no livro.
Mais
que uma coletânea, “O mínimo...” é um monumento ao pensamento de Olavo. Estão
lá todos os temas de seu pensamento: a crise da intelectualidade brasileira, a
dominação socialista no Brasil, as manipulações de conglomerados internacionais
sobre a imprensa, o lobby do aborto e dos direitos LGBT (chamados por ele de
Gayzismo), e na parte final o emburrecimento da juventude brasileira e a
chamada de Olavo por um novo humanismo.
Eu
como historiador de ofício, uspiano e católico aceito seu desafio de bom grado e
vou responder as suas perguntas, Olavo de Carvalho.
Vamos
lá!
1) Qual é a natureza do poder, não
só na política mas em todas as relações humanas, e qual a diferença específica
entre o poder político e as demais formas de poder?
Sua
primeira pergunta remete mais a ciência
política e a filosofia e menos a história, mas merece uma resposta.
A
natureza do poder... Taí uma pergunta que faraós, imperadores romanos, duques e
reis, ditadores, presidentes e presidentas acham que respondem com a sua
prática diária da política, mas com certeza quase absoluta não sabem explicar.
Um
sociólogo começaria a réplica à tua pergunta Olavo citando Max Weber e sua Política como vocação (ou profissão...),
mas a sociologia weberiana não é a minha praia, embora eu até goste de alguns
dos escritos de um dos pais da sociologia moderna. Também não me apetece o
pensamento de Michel Foucault e sua filosofia das relações de dominação onde um
quer dominar o outro.
Para
mim, Olavo, o poder dos homens foi tomado emprestado do Deus Criador dos céus,
terra, ares e mares. Jesus já tinha alertado quando disse a Pilatos: “A
autoridade que tendes não é tua, mas foi dada por outro”. Cada um de nós:
presidente, rei, governador, síndico, pais de família, temos em graus maiores
ou menores uma autoridade que é própria mas na origem é “emprestada por Deus”.
A diferença entre o poder político e outros tipos de poder, vista por este
ângulo sobrenatural, é apenas relativa.
Por
séculos os homens erroneamente pensaram que a política encobria segredos
terríveis que deviam ser escondidos dos reles cidadãos, mau hábito que se
arrasta até hoje em países como o nosso Brasil. Os mistérios da política
deveriam ser ocultos dos olhos indiscretos dos repórteres, demais políticos e
principalmente do “povão” ignorante que não entenderia bulhufas das falas e do
pensamento político.
Ainda
hoje os cientistas políticos citam e veneram Maquiavel como a base do
pensamento político ocidental. Maquiavel separava as razões éticas, morais e
religiosas das questões de Estado, uma separação que cria problemas seríssimos
até hoje.
Mas
aí me lembro que anos atrás um conhecido (e temido) senador da república (Antonio Carlos
Magalhães, senador baiano pelo antigo PFL e atual Democratas) brasileira, conhecido pelos seus
conchavos e falcatruagens ao saber que em breve morreria, agarrou o braço do
médico e disse:
“Faça o que for possível e
impossível, mas não posso morrer doutor!”.
Patético
ato final de um homem aparentemente tão poderoso. No derradeiro momento de sua
vida ele percebeu que todo o seu poder – e sua vida! - não era realmente dele,
mas dependia da Boa Vontade de Outro!
A
Doutrina Social da Igreja Católica
nos lembra que o Estado, a sociedade, até mesmo a Igreja foram criadas depois
da família, já que o homem e a mulher antecederam a criação disso tudo. Logo,
todas essas instituições devem proteger a família, célula mater da raça humana. Para mais informações, Olavo, recomendo
a leitura de alguma encíclica papal sobre a Doutrina
Social da Igreja. Enriquecerá muito o seu pensamento:
Criada pelo papa Leão
XIII a partir da encíclica Rerum novarum,
a doutrina social da Igreja quer orientar os cristãos para que atuem no mundo a
fim de mitigar as misérias e sofrimentos humanos, mas sempre tendo como ponto
de partida a doutrina católica. Ao longo destes anos os sucessivos papas
publicaram diversas encíclicas sociais. Segue abaixo uma curta lista de
documentos que todo católico deveria ler para se inteirar do seu papel neste
mundo criado por Deus:
_
Rerum novarum - Leão XIII (1891)
_
Quadragesimo anno - Pio XI (1931)
_
Humani generis – Pio XII (1950)
_
Mater et magistra - João XXIII (1961)
_
Pacem in terris - João XXIII (1963)
_
Populorum Progressio - Paulo VI (1967)
_
Octogesima adveniens - Paulo VI (1971)
_
Laborem exercens - João Paulo II (1981)
_
Centesimus annus - João Paulo II (1991)
_ Caritas in veritate - Bento XVI (2009)
Aqui vale um aviso: quando
o papa fala sobre Doutrina Social da Igreja ele não trata de dogma de fé. Ele
reflete a realidade à luz do Evangelho. O cristão não precisa necessariamente
concordar com as colocações do papa, embora elas sejam muito bem fundamentadas.
Seguem abaixo dois exemplos:
O Papa São João XXIII na
sua encíclica Pacem in terris comenta que seria necessária a reforma agrária
(isso mesmo!) para uma justa redistribuição de terras. Um papa defendeu a
reforma agrária... e agora? É dogma de fé vestir bonés vermelhos, enxadas nos
ombros e morar em barracas de lonas pretas pelas beiradas das estradas do
Brasil? Não. Mas muita gente fez essa confusão e usou a palavra de um santo
para justificar a criação de órgãos de reforma agrária a partir da Igreja
Católica: a CPT (Comissão Pastoral da
Terra) nasceu nos anos 1970 inspirada nas palavras de João XXIII e o MST (Movimento dos Sem-terra) nasceu da
CPT. Mas você pode discordar, se quiser. Pode contra-argumentar que as demandas
agrárias de 1963 não são as de 2014.
Bento XVI na Caritas in veritate defende a criação de
um “governo mundial internacional” colocado acima dos governos nacionais. Um
amigo meu, promotor de justiça e pai de família muito católico discorda
frontalmente do papa: “Essa idéia é um absurdo, Minami”, ele me disse. E ele
não foi expulso da Igreja por dizer disso. O papa Bento, homem muito sábio por
sinal, emitiu um juízo sobre um assunto que não é dogma de fé, logo você não é
obrigado a concordar. Embora de fato a anarquia na política internacional atual
(2014) prove que é preciso um órgão internacional a mediar os conflitos e a
ONU, hoje desmoralizada, não é mais capaz de suprir essa demanda.
O campo da política,
desde que não aborde temas inegociáveis ao cristão (vida humana, família,
dignidade humana, liberdade religiosa) ainda reserva um vasto campo de debate.
Nesse campo é preciso ao máximo respeitar a liberdade das pessoas, por isso
alerto: NÃO SE DISCUTA POLITICA NA IGREJA. A DISCUSSÃO É RESERVADA AOS LEIGOS,
EXCLUSIVOS PROTAGONISTAS NESSE ASSUNTO. UM SACERDOTE QUE LEGISLE SOBRE ESSE
ASSUNTO IMPINGINDO TAL OU QUAL PARTIDO OU CANDIDATO EXTRAPOLA SEUS DEVERES
SACERDOTAIS.
2) Que é propriamente a “ação” em
escala histórica? Em que condições a expressão “história disto” ou “história
daquilo” se refere a uma entidade real, capaz de ação contínua ao longo do tempo,
e quando se refere apenas, metonimicamente, a um sujeito ideal, sem unidade de
ação própria, como por exemplo quando se fala em “história do Brasil” ou
“história da burguesia”? Em suma: quem é o sujeito da história?
Agora
sim, adentramos a minha disciplina!
Para
sua sorte, Olavo, sou eu quem vai responder e não algum dos meus colegas. Digo
isso porque desde Jacques Maritain aprendi que: “Kant, Hegel e Marx. A partir
deles foram escritas todas as filosofias da história. Todos farsantes!”. Porque
essa repulsa do velho filósofo católico aos maiores pensadores da filosofia da
história moderna? Porque ou eles partem de pressupostos teóricos e/ou
antropológicos errados ou simplesmente anulam a ação individual do homem em
nome do “sistema”, da “classe social” ou do “tipo ideal” de homem ou grupo que
estão sob a analise deles.
Basta
abrir a “História da revolução francesa” de Michelet: o povo revoltado com a
opressão da monarquia toma a Bastilha, que se torna o marco da Revolução
Francesa. Como bem havia alertado meu professor de Teoria da História na USP:
“Gente, a bastilha tomou vida e começou a Revolução!”. O homem enquanto pessoa some
da história moderna. Massas de homens, ideias, grupos, culturas, fazem a
historia, o homem individualmente não.
Mais
recentemente a historia das mentalidades
(Escola dos Annales) e a micro-história
(com o método indiciário de Carlo
Ginzburg) tentaram revalorizar o papel do homem e da mulher comuns na história
humana reagindo a essa historia amorfa de massas. Daí a origem da fragmentação
da historia em um numero quase infinito de temas: histórias da sexualidade, da
mulher, do jovem, do marxismo, da burguesia, do humor... mas o resultado final
disso tudo foi aumentar ainda mais a sensação de que a verdade histórica não
existe, somente infinitas versões de um mesmo fato, o que praticamente extingue
a possibilidade de conseguirmos atingir a verdade.
Para
corrigirmos o rumo da História enquanto disciplina, além de relativizarmos o
papel de Marx, Hegel, Kant, Foucault, Derrida, precisamos voltar a pensar em
termos de Filosofia da História a partir de autoridades autenticas e sadias: Santo
Agostinho, São Tomás de Aquino, Raimundo Lúlio, Henri Irineé Marrou, Jacques
Maritain, Jean Danielou, Bento XVI, e depois eu acrescentaria Christopher
Dawson, Daniel-Rops, Fabrice Hadjadj...
A
partir daí deveríamos pensar, Olavo, não apenas em uma filosofia da história e
uma filosofia da religião, mas de fato e seriamente em uma Teologia da História.
Aí finalmente conseguiríamos entender que a história humana é parte de uma
história maior, uma história divina e que a História
da Igreja Católica Apostólica Romana nada mais é que a ação do Espírito
Santo (Deus) entre os homens, estejam eles conscientes disso ou não!
Ultrapassaria a concepção de Mircea Eliade da igreja como o templo para o culto
que sinaliza que nesse local o céu toca a terra tornando-se um “axis mundi” (eixo
do mundo). Iria mais além!
Mas
aí poderia surgir outra pergunta: “Mas Deus agindo diretamente na história
humana não nos faz voltar ao ponto de partida de nossa discussão: a liberdade
humana e a ação individual dos homens na história?”. Sim e não. Deus, infinito,
poderia muito bem se apossar de nós pobres criaturas e nos transformar em
marionetes de seu desejo. Voltaríamos assim ao ponto de partida de Hegel: o Espírito dos Povos (Weltanschauung), que
o filosofo alemão confundia com Deus, estaria acima da vontade dos homens.
Mas
Deus é Onipotente, infinitamente justo e bondoso: ele conta com a nossa
colaboração em tudo: desde a geração de mais um ser humano pelo casamento (não
por tubos de ensaio, “barrigas de aluguel” ou clonagem, mas de um pai e de uma
mãe!) até a realização das mais altas obras de caridade.
Deus
fala baixo e pede licença a nós homens, suas criaturas. Sempre!
“Mas
afinal, japonês: quem é o sujeito da historia?”. Simples: o homem. O homem usa
bem ou mal de sua liberdade dada por Deus e o destino do mundo segue o plano
divino, com ou sem a nossa colaboração.
O
homem escreve a história, mas Deus é o dono da editora, editor e corretor de
texto.
3) Qual a relação entre as
“intenções” subjetivas dos agentes históricos e os efeitos reais de suas ações?
Qual a equação que se forma entre o conhecimento objetivo dos dados da
situação, as decisões tomadas, a execução, os resultados específicos e sua
diluição num quadro maior onde outros fatores entram em jogo? Existe uma ação
histórica eficiente, na qual os efeitos reproduzam mais ou menos fielmente as
intenções? Ou, ao contrário, a história humana estará sempre condenada a ser,
como dizia [Max] Weber, “o conjunto das consequências impremeditadas das nossas
ações”?
Estas
perguntas são continuação da pergunta anterior.
Aqui
penso em termos de “Teologia da História”: o homem pecador, mortal e limitado é
chamado pelo seu Deus a viver o Cristianismo na sua radical totalidade. Ele,
obviamente, sente-se incapaz de tanto. Geme, pede perdão pelas suas limitações,
erros e vícios. Mas toma a tarefa à peito e... vence! Sim, muitos santos e
sábios conviveram com defeitos ou costumes hoje considerados horríveis: São
Francisco de Assis era um “playboy” antes de se converter; Chesterton nunca
deixava seu prato vazio; São João XXIII fumava charutos e cigarros, e assim por
diante.
A
“Teologia da História” nos ensina que o homem aceita livremente cumprir o
destino que Deus traçou pra ele mas sem abdicar de sua liberdade. A Vontade
Divina será cumprida com um toque pessoal de cada um, e apesar dos nossos
insaciáveis caprichos!
Diferentemente
pensam as ciências humanas diante desse questionamento. Norbert Elias, judeu
alemão, sobrevivente do holocausto e discípulo do citado Max Weber, escreveu
até um livro intitulado “A sociedade dos indivíduos” tentando compreender isso.
Os homens não estão irmanados em torno de um destino comum humano nem muito
menos sobrenatural, mas aguentam-se como podem empurrando-se pelos ombros.
Triste isso!
A
análise de Hegel e Marx não nos deixa em “melhores lençóis”: diluídos entre um
“espírito dos povos” e uma “luta de classes”, a velha e manjada luta bons
versus maus, o individuo desaparece das análises históricas em nome de grupos
ou entidades diversas. A erotização do marxismo a partir dos anos 1960 com
Herbert Marcuse colocou temas como aborto, união homossexual, plurifamilias na
pauta da esquerda, uma pauta que faria corar comunistas históricos da primeira
geração.
Mas
voltando a pergunta sobre ação individual e causas libertárias e/ou históricas,
repito com o velho ditado: “Deus escreve certo por linhas tortas”, ou “Deus
escreve com a perna da mesa”. E quem ajuda a segurar essa perna de mesa? Ora, o
homem.
4) Dando por pressuposto que ninguém
pode se colocar fora do quadro comum da vida humana para observá-lo “de cima”,
e que portanto toda observação é uma forma de participação, não é possível
isolar totalmente observação e confissão. Qual a relação entre autoconhecimento
e conhecimento histórico? Em que medida o conhecimento da história pode e deve
ser um meio de integração da consciência pessoal do estudioso, e em que medida
esta se reflete na veracidade da descrição histórica obtida? Em que medida toda
história é autobiografia e, portanto, toda descrição de uma situação política,
social e cultural determinada é uma confissão pessoal?
Todo
homem é filho do seu tempo. O historiador é homem, logo o historiador é filho
do seu tempo. Essa é o que eu poderia dizer uma das “regras de ouro” do oficio
do historiador, juntamente com a “História mestra da vida” e a
“irrepetibilidade do fato histórico”.
Há
mais de 100 anos essa sua pergunta seria considerada descabida, Olavo. Fustel
de Coulanges, um dos primeiros grandes historiadores, nome maior da chamada
“Escola Metódica” ou “Positivista”, responderia simplesmente que a pergunta era
absurda. A história – segundo Coulanges – se faz com documentos escritos. Basta
reunir todos os documentos, lê-los e pronto: está escrita a versão definitiva
da história.
Durante
décadas esse postulado “positivista” foi seguido à risca: gigantescas coleções
de documentos escritos foram publicados sendo a mais famosa a “MONUMENTA
GERMANICA HISTORICA”, reunindo documentos sobre a história alemã. Outros países
seguiram o exemplo alemão: Itália, Inglaterra, França. Nem mesmo a Igreja
Católica ficou atrás: a BAC (Biblioteca
de Autores Cristianos) sob a organização da Universidade de Navarra (EUNSA) tornou acessível documentos
milenares dos Padres e Santos da Igreja. Arquivos e bibliotecas foram
organizados, livros armazenados, tudo para que o velho sonho iluminista de se
esgotar o conhecimento humano fosse atingido.
Mas
um belo dia a “Escola Metódica” foi fortemente questionada. A chamada “Escola dos Annales” fundada por dois
professores: Marc Bloch (um ex-oficial Frances, judeu, que depois lutaria na
“Resistência Francesa” contra a ocupação nazista – e seria morto pelos nazis!),
e Lucien Febrve.
Annales
colocava em dúvida a exclusividade do documento escrito como única fonte do
fato histórico e sugeria novos documentos, como por exemplo atas de paróquia,
lendas medievais, taumaurgia dos reis franceses (Na sua obra Os reis taumaturgos Marc Bloch trabalha a crença medieval de que a
imposição das mãos do rei seria capaz de curar os doentes.), entre outras fontes.
Os
historiadores posteriores só fizeram alargar as fronteiras do conceito de
“documento”: roupas, romances, contos, isso sem falar na chamada “cultura
imaterial”: danças, crenças, causos populares, medos, taras, etc. O céu é o
limite no quesito temas!
Mas
aí, Olavo, você me provoca e responde: “Mas e daí? E a objetividade histórica?”.
Pois
bem... Aqui reside um dos dramas da historiografia moderna: assim como em
outros ramos das ciências humanas a busca da verdade se eclipsou em detrimento
da metodologia. Métodos e escolas historiográficas existem aos montes, mas
infelizmente poucas abrem caminho para a busca da verdade. Abdicou-se da busca
da verdade. Na prática o que temos são conjuntos quase infinitos de opiniões
sobre os mais diversos assuntos e temas, em geral temperados pela sociologia e
antropologia.
Mesmo
a filosofia moderna aparece “de escanteio” nos debates historiográficos, o que
não dizer da teologia que há quase 200 anos sofreu uma influencia cada vez
maior das ciências humanas, a partir daí usadas como chave hermenêutica da
interpretação bíblica e até mesmo da fé e da ação dos fieis no mundo. O
resultado disso tudo, Olavo, foram movimentos dentro do catolicismo e mesmo
fora dele (no luteranismo, por exemplo) que interpretaram o catolicismo sob a
ótica sociológica do marxismo. Refiro-me aqui á Teologia da Libertação, que se
propunha adotar o marxismo como leitura da realidade social do cristão e também
chave de interpretação da Bíblia. Não preciso dizer que muitos cristãos não se
encaixaram nesse quadro...
Mas
tenho uma boa noticia pra nós, Olavo: eu não me enquadro nesse quadro!
Para
mim, a objetividade histórica reside na sincera busca da verdade usando
instrumentais teóricos válidos, livres de erros antropológicos e premissas filosóficas
falsas. Em resumo, Olavo, precisamos revigorar a Filosofia da História, a
Filosofia da Religião e, finalmente, retomar o velho projeto da Teologia da
História de Jacques Maritain, Jean Danielou, e porque não, incluir André
Frossard, Bento XVI, João Paulo II...
O
Papa Emérito já havia nos alertado no prefácio do 2º volume de sua Obra “Jesus
de Nazaré” sobre o esgotamento do modelo teológico dependente das ciências
humanas:
“Uma coisa parece-me óbvia: em 200 anos de
trabalho exegético, a interpretação histórico-crítica já deu o que de essencial
tinha para dar. Se a exegese bíblica cientifica não quer exaurir-se em
hipóteses sempre novas, tornando-se teologicamente insignificante, deve
realizar um passo metodologicamente novo e voltar a reconhecer-se como
disciplina teológica, sem renunciar ao seu caráter histórico. Deve aprender que
a hermenêutica positivista de que parte não é expressão da razão exclusivamente
válida que se encontrou definitivamente a si mesma, mas constitui uma
determinada espécie de razoabilidade historicamente condicionada, capaz de
correção e acréscimos, e necessitada deles. Tal exegese deve reconhecer que uma
hermenêutica da fé, desenvolvida de forma justa, é conforme ao texto e pode
unir-se com uma hermenêutica histórica ciente dos próprios limites para formar
um todo metodológico”[1].
Uma
história humana que circula pela história divina e que nos lembra que “nem só
de pão vive o homem mas de toda palavra que sai da boca de Deus!”, e uma
teologia que não é simplesmente “criação da cultura” e nem apenas ato de fé do
fiel mas uma ciência com temas, métodos e Objeto de estudo próprios (e que
objeto: Deus!).
A
cultura influencia a religião? Sim. Mas a religião também influencia a cultura.
Gramsci quando reduziu tudo a expressão cultural não era capaz, devido a seu
ponto de partida no marxismo ocidental (e não cultural), de entender que a
religião e a teologia tinham vida própria.
Exagerado
tudo isso o que eu escrevi? Creio que não.
5) Em que medida, portanto, o estudo
das ciências humanas é uma prática “ascética” de autoconhecimento, e em que
medida as disciplinas ascéticas e místicas desenvolvidas pelas religiões
tradicionais, bem como as técnicas modernas de psicoterapia e autoajuda, podem desempenhar
nesse estudo uma função essencial?
Olavo,
esta sua quinta pergunta é interessante. Há pouco discutíamos sobre a relação
da história humana e a história da salvação e em como uma historiografia
aplicada à história da Igreja Católica Apostólica Romana precisa ter um formato
próprio, ser um instrumental teórico apropriado para se estudar essa
instituição singular, uma teologia da história propriamente dita.
Creio
que somente dentro de uma disciplina como essa, a teologia da história, caberia
falarmos de ascese e autoconhecimento da parte do pesquisador. Digo isso
porque, creio que nas respostas anteriores deixei claro que para as ciências
humanas hoje não se busca mais a verdade. Pena. Seria perfeitamente possível um
filósofo buscar a verdade, assim como um historiador, um geógrafo, um antropólogo...
Mas como desde o séc. XX a busca da verdade foi definitivamente abolida, só
restou aos cientistas sociais apegarem-se às metodologias de pesquisa. De fato,
nas faculdades discute-se pesadamente métodos, e pouco ou quase nada de
finalidades.
Há
muitos anos li o livro Fundamentos de
antropologia[2]
de Echevarría e Yepes (já falecido) onde os autores na parte final do livro
admitem que o homem de fé leva inúmeras vantagens para compreender o ser humano
nas suas dimensões racional, emocional e espiritual. A principal vantagem do
homem e da mulher de fé é que ideias chave do pensamento filosófico coincidem
com o pensamento religioso, como por exemplo questões relacionadas a
finalidade, a existência de Deus, ao código moral, entre outros, facilitando a
reflexão intelectual.
A
religião e a religiosidade podem desempenhar papeis primordiais na pesquisa
cientifica nas humanidades, pois ajudam a depurar a pesquisa de equívocos
antropológicos, como as relações sociais vistas como “luta de classes” ou como
permanente conflito entre homens (o conceito de Thomas Hobbes do “homem
predador do próprio homem”).
Claro
que aqui penso a religião como expressão máxima da dimensão sobrenatural do
homem já depurada dos erros presentes em muitas religiões, conforme o Papa
Emérito Bento XVI havia alertado no seu celebre – e mal compreendido – discurso
na universidade de Ratisbona em 2006, onde ele expos o papel da razão capaz de
apontar a verdade de uma religião.
A
busca do fiel pelo seu Deus difere da do cientista em um ponto essencial: o
tempo. Ao fiel basta um ato de fé imediato para adentrar na plenitude divina.
Ao cientista custará anos e anos de reflexão, suor, cansaço, retificação de
ideias preconcebidas... até que um dia ele se renderá extenuado a evidencia do
Ser Divino. Mas a busca do intelectual é mais completa pois mostra todas as
etapas dessa busca. O místico por vezes não: ele sente a presença de Deus e a
vive.
Em
resumo, Olavo: a pesquisa cientifica honesta e séria não tem porque afastar o
homem do seu Deus.
O
resto é apenas debate.
6) Como é a psicologia do
conhecimento na história e nas ciências humanas em geral? Da percepção dos
dados sensíveis (documentos, monumentos, ações observadas) até as sínteses interpretativas
gerais, qual o trajeto psicológico percorrido e como dirigi-lo para diminuir a possibilidade
de erros?
Essas perguntas, Olavo, já foram
respondidas há mais de 70 anos por um historiador de renome chamado Marc Bloch.
De dentro do seu esconderijo o ex-oficial francês e naquele momento trágico
franco-atirador da resistência escreveu em uns cadernos sobre o papel e o
oficio do historiador. Após sua morte em 1944 nas mãos dos torturadores
nazistas seu companheiro intelectual Lucien Febrve publicou os cadernos agora
intitulados “Apologia à história” (algumas edições chamam de “Combates pela
história”). Existem dois manuscritos diferentes escritos por Bloch que nas suas
linhas gerais coincidem. Mas afinal, do que tratam os manuscritos? Das etapas
do oficio do historiador, que seriam grosso modo:
a)
Catalogação
e classificação de documentos (tarefa também de arquivistas)
b)
Analise
interna e externa de documentos
c)
Escolha
de um tema histórico do seu interesse
d)
Possibilidade
de estudo do tema (existência de documentos, localização, acessibilidade).
e)
Leitura
da bibliografia existente sobre o tema em livros e artigos científicos
f)
Adoção
de uma metodologia e de uma teoria filosófico-histórica válida e honesta
g)
Estudo,
análise, leitura dos documentos, redação do texto final e apresentação dos
resultados.
Eis, em linhas gerais o que é
preciso para uma pesquisa em história minimamente séria.
Mas aí Olavo você diz: “Tá japa,
mas ainda assim onde fica a objetividade histórica?”.
Imaginei que você me
contra-argumentaria assim. Não podemos esquecer que a História não possui o
andamento da física e da matemática. Não consigo provar com 100% de certeza
sobre um fato histórico e gerar uma interpretação isenta de erros, mas posso me
aproximar de algo que eu poderia chamar de eliminação de probabilidades.
Um exemplo: segundo Bloch até o
séc. XIX colocava-se em dúvida a existência de Júlio César, o famoso general
romano. Essa dúvida era consistente por alguns motivos, como por exemplo a
escassez de documentos sobre César, sendo que só possuíamos os escritos pelo
próprio personagem e a análise interna dos documentos. Segundo Bloch textos
escritos com a clara e patente intenção de elogiar uma pessoa ou fato em geral
falsificam ou exageram os fatos narrados, ou seja, livros como A guerra da Gália poderiam ser falsos já
que nele César o tempo todo se vangloria dizendo como ele era mais esperto e
competente que Vercingetórix, o líder da revolta gaulesa contra os romanos. Mas
após 2000 anos de pesquisa histórica hoje ninguém põe em duvida que Julio César
existiu e, embora demonstrasse ter um ego gigantesco, conquistou os gauleses e
foi um gênio militar. Isso é fato histórico!
O problema na minha disciplina é
que o debate é elemento essencial e, infelizmente, muitos de meus colegas
confundem debate com o ceticismo e criticismo mais ácidos aplicados a tudo:
moral, religião, vida humana, família, etc., tudo temperado com ideologias como
o marxismo, cujas lentes ideológicas fazem uma leitura parcial e incompleta da
realidade histórica.
Mas a “apologética católica”, que
renasceu nos últimos anos como reação aos ataques sistemáticos contra o
catolicismo não me parece seguir um caminho mais sadio, já que frequentes vezes
quer provar a todo custo a inocência da Igreja, uma inocência que ela sempre
possuiu na sua essência como Igreja do Cristo, mas que infelizmente na sua
realização histórica fica manchada pela ação dos homens e mulheres que a
constituem, que tiveram escolhas livres mas desgracadamente escolheram mal. A
Igreja enquanto instituição sobrenatural é santa, mas a igreja enquanto
conjunto dos fieis nem tanto...
Mas relaxe, Olavo: não é isso o que
eu proponho como meta da pesquisa histórica. A objetividade histórica atinge-se
sim com o lento e paciente acúmulo de conhecimento histórico.
A história é uma ciência humana com
uma meta objetiva: depurar a leitura do passado de ideologias
político-filosóficas, equívocos, apologéticas e “lendas-negras”, e realizar um
debate entre especialistas e obras (livros e artigos) para troca de informações.
Assim seja!
CONCLUSÃO
Além de você, Olavo, creio que uns
poucos bravos moicanos leram com paciência meus escritos ao longo desta semana.
Isso infelizmente é um sinal dos tempos trepidantes que correm: pressa pra
tudo, pra amar, ter filhos (outros diriam justamente pra não tê-los!), comer,
correr, dormir... O homem moderno corre apressadamente para o nada!
Entre esses pouco tenho certeza que
contarei poucos colegas de oficio, o oficio do historiador. Uns por não
acessarem o Facebook, outros por falta de tempo, e outros por puro desprezo por
um japa de meia idade, católico, que para eles misturou tudo: metodologia com
religião, um crime! A professora Solange Andrade da UEM expressou em poucas
linhas o drama da historia das religiões hoje no Brasil:
“Todos
nós somos um pouco historiadores, antropólogos, filósofos, sociólogos, e
morremos de medo de nos tornarmos teólogos. O que nos diferencia?”
“A importância da transdisciplinaridade no estudo das diversas manifestações
religiosas nos permite tentar apreendê-las em sua totalidade. Realmente fazemos
isso?”.
“Durkheim, que dispensa apresentação, já afirmava no seu clássico As
formas elementares da vida religiosa a importância de analisar as religiões
a partir da história. Michel de Certeau, no início dos anos 1970 chamava a
atenção dos historiadores para os perigos de se fazer teologia em vez de história.
Eliade, em seu prefácio ao livro O Sagrado e o Profano, dividia os historiadores
das religiões em duas orientações metodológicas, divergentes e complementares:
aqueles que se concentravam nas estruturas específicas dos fenômenos religiosos
e aqueles que se concentravam no contexto histórico desses fenômenos”.
“Como
nós trabalhamos atualmente? Isolamos nossos objetos e nos tornamos os
“especialistas da especialidade”, sem relacioná-los com o momento vivido e pensado?
Ora, o fenômeno religioso é, por demais, complexo. Trabalha com referências
simbólicas, dizem respeito a todos os movimentos, comportamentos e práticas
sociais. Reduzir o fenômeno religioso a ele mesmo significa empobrecê-lo, uma
vez que a religião é uma construção humana, ela é histórica, podendo ser
detectada num contexto social, político, econômico, cultural, simbólico”.(O
grifo é meu).
“Volto
a citar Durkheim, quando afirma que as representações religiosas são representações
coletivas, que exprimem realidades coletivas. Tomo por empréstimo uma frase de
Alfredo Bosi ao se referir à cultura. Aqui vale para o estudo das religiões e
religiosidades Plural sim, mas não caótico””[3].
O historiador da religião é tudo
isso. Mas também não poderíamos dizer que não é nada disso? Extrapolando a
discussão: os historiadores não estariam à deriva? Se um intelectual em uma
renomada universidade pública confessa seu estado de náufrago do saber
histórico, o que não dizer do homem comum!
Da fala da professora Solange
confesso que discordo quando ela simplesmente diz que a religião é produto
cultural. Para mim há sim uma influencia da cultura na religião, mas a religião
também tem sua característica própria. Para mim hoje (2018) não há problema em
o historiador católico da Igreja fazer teologia dentro da pesquisa histórica de
sua disciplina. Obviamente que aqui a maioria dos meus antigos colegas de
oficio ou vão me chamar de louco ou vão querer me botar pra escanteio, já que o
laicismo ortodoxo que tornou-se há anos na academia não tolera cristãos como
eu.
Mais que uma apologética ou uma
metodologia da história, o que eu tentei propor foi recolocar a discussão em
bases novas, extrapolando os juízos da modernidade de incessante desconstrução
e reconstrução de tradições em prol do retorno a busca de metas sobre bases
sólidas e pontos de partida concretos.
Espero ter sido feliz no meu
singelo objetivo!
[1] BENTO XVI. Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. Trad.
Bruno Bastos Lins. 5ª reimpressão. São Paulo. Ed. Planeta. 2013. p. 12
[2] Este livro possui tradução ao
português e edição pelo Instituto
Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio.
[3] ANDRADE, Solange
Ramos. O catolicismo popular no Brasil: notas sobre um campo de estudos. In: Revista Espaço Acadêmico 67,
dezembro 2006, ano VI. p. 09.
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