Globalismo, nova ordem
mundial. Essas palavras vêm me assombrando há anos, desde 2010
quando eu participava das reuniões nos “porões” da Igreja Nossa Senhora do
Paraíso para distribuir folhetos contra o aborto e a eleição de Dilma
Rousseff. Confesso que poucas vezes eu me dei o trabalho de estudar o assunto a
fundo. Quando muito eu procurava me informar sobre as estratégias abortistas
junto a amigos que militam pela “causa da vida humana” e nesses meios essa
expressão é utilizada frequentemente. No Instituto Raimundo Lúlio (2011-2013)
eu me deparei com esse livro no estoque da editora. O título e a capa me
hipnotizavam com a sua Torre de Babel enorme, mas após um ano os livros foram
recolhidos e nunca mais o vi.
Mais recentemente (2015-2016)
em uma das minhas visitas a casa dos fundadores de uma excelente comunidade
aqui de São Paulo (que não posso revelar por motivos de confidencialidade)
conversávamos sobre a “crise da Igreja” e as estratégias dos inimigos de Deus em
estabelecer uma nova sociedade atéia e contrária a liberdade religiosa. Lá
pelas tantas entramos num assunto caro a eles: o cumprimento das profecias do Apocalipse.
Lembro-me que me disseram que num voo de volta ao Brasil conheceram Mons
Sanahuja que o alertou sobre os perigos que rondavam a Igreja e o próprio Papa,
e de como os “inimigos da Igreja” estavam dentro da própria Igreja. “Foi o
próprio Sanahuja quem nos disse!”, me lembro bem dele ter dito isso.
Desde então minha
curiosidade acerca desse livro e seu conteúdo só aumentou, mas como andava
ocupado em estudar os teóricos da História da Igreja, entender o Globalismo e a
Nova Ordem Mundial sempre ficavam em segundo plano. Mas, em fins de 2019
durante o 4º Fórum Famílias Novas ocorrido no Mosteiro de São Bento no
centro de São Paulo capital eu vi o livro em nova edição à venda pelo Centro
Dom Bosco. Não resisti e comprei. O livro ficou dormitando por meses no
armário engrossando a “fila” de leituras.
Mas aí veio o coronavírus
com todo o seu triste corolário de medidas sanitárias, isolamento social, fechamento
de estabelecimentos comerciais, mortes, crise política, crise na saúde, etc. E
aí eu me vi na necessidade de me manter mentalmente sadio, e para isso comecei
a “debulhar” as minhas leituras e fichamentos parados até que chegou a vez de Poder
global e religião universal II. Nessa altura já estava em começos de
maio de 2020, com a crise de saúde atingindo picos até então insuspeitos, e nas
redes sociais os apoiadores do presidente Bolsonaro indignados com as
restritivas medidas de isolamento, a falta de transparência do governo chinês
em esclarecer as origens da pandemia, a OMS se tornando o exemplo a não ser
seguido... E aí os termos globalismo e nova ordem mundial voltaram a
permear o vocabulário dos meus conhecidos e amigos que veem na pandemia um
instrumento para implantação da nova sociedade secular e materialista.
Mons. Sanahuja se
identificava como jornalista. O jornalismo investigativo anda raro nos dias
atuais e admito que a leitura do livro de Mons. Sanahuja impressiona pelo rigor
e seriedade com que foi produzido. O livro teve duas edições: uma primeira em
2009 e outra definitiva em 2016, mesmo ano de seu falecimento. Essas
informações são importantes para entendermos o livro e o tratamento com que o
tema foi abordado em 2009 e 2016, como podemos perceber pelos prefácios.
Primeiro o de 2016:
“A
confusão chegou a níveis inimagináveis, pelas mãos de instâncias que deveriam
dar segurança e luz, confirmando na fé os cristãos. Pelo contrário, na Igreja
abundam as dúvidas, se pactua com aqueles que não a amam, ignorando, relegando
e até punindo aqueles que pretendem ser bons discípulos de Jesus. O Cardeal
Antonelli dizia há poucos meses: ‘O Papa mesmo está consciente de que, ao
avançar por este caminho, se correm riscos: ‘Compreendo os que preferem uma
pastoral mais rígida que não dê lugar a confusão alguma. Mas creio sinceramente
que Jesus quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da
fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente seu
ensinamento objetivo, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de
manchar-se com a alma do caminho’ (Amoris Laetitia, n 308). Podem-se
prever riscos e abusos tanto entre os pastores como entre os fiéis, por
exemplo: confusão entre responsabilidade subjetiva e verdade objetiva, entre
lei da gradualidade e gradualidade da lei; relativismo moral e ética da
situação; valoração do divórcio e da nova união como moralmente lícitos, desincentivo
da preparação para o casamento, desmotivação dos fiéis separados, acesso à
Eucaristia sem as necessárias disposições; dificuldades e perplexidades dos
sacerdotes no discernimento; incerteza e ansiedade nos fiéis’”.
“Assim,
encontramo-nos com muitos católicos desmobiliados e acovardados, aos quais os
acontecimentos destes últimos três anos converteram, no melhor dos casos, em
indiferentes”.
E o primeiro prefácio de
2009, onde Mons Sanahuja apenas advertia os católicos acomodados:
“À
timidez de muitos católicos, soma-se a ditadura do politicamente correto,
ameaças muito mais sutis que as de outrora. Pretende-se a cumplicidade da
religião, que por sua vez está sendo exilada dos campos da ação e do
pensamento. A nova ditadura corrompe as consciências individuais, e falsifica
quase todas as esferas da existência humana”[2].
(...)
“O
esforço realizado para ordenar estas notas e apontamentos me seria compensado
se, como consequência de sua leitura, alguns rezassem mais, estudassem mais,
pensassem mais e agissem sem respeitos humanos para romper o politicamente
correto, os lugares-comuns e o encantamento mundano”[3].
Para Mons. Sanahuja em
menos de uma década desde a primeira edição do livro (2009) a situação piorou
muito, e ele apontava a eleição do Papa Francisco (2013) como um fato de crise
dentro do catolicismo. O tom de alerta perpassa boa parte do livro e explica
porque o editor da edição brasileira tratou de colocar no título a parte “II” e
não simplesmente indicar uma segunda edição, já que Sanahuja praticamente
reescreveu o livro. Como não li a edição de 2009, não posso afirmar
categoricamente, mas comparando as partes do texto com citações anteriores a
2009 e as posteriores, notei como o tom do texto mudava.
Quero deixar claro que o
cristão não pode ser um ingênuo que pense que o mundo é cor de rosa e ignora os
perigos que rondam a Igreja e seus fiéis. Alertar é tarefa que aliás Sanahuja
executa com um rigor intelectual incomum, mesmo na universidade. Mas o centro da
vida do cristão deve ser a oração e o apostolado, pontos que aliás Sanahuja
destaca num capítulo especial, o 7º: Notas para um comportamento cristão.
Desarmar teorias da conspiração; denunciar a falta de transparência de
entidades que deveriam cuidar de mulheres desamparadas, crianças, velhos e
doentes, mas que infelizmente se dobram a interesses escusos de ricaços e
conglomerados internacionais para promover o aborto, o infanticídio e a
eutanásia é dever grave do cristão, mas não é o principal. O principal é ser um
“discípulo do mestre Jesus”: ter vida de oração, frequentar os sacramentos,
promover o bem comum, etc.
Quanto ao papado de Francisco,
bem, aqui penso como historiador. Somente quando seu pontificado acabar teremos
um mínimo de condições de avaliar sua obra e seu legado. Se serve de consolo,
saiba que a História da Igreja já registrou o sentimento de desamparo e crise
em muitos fiéis e grandes santos. Seguem apenas alguns exemplos:
“Os
tempos estão tão perturbados para nós! Quem pode pensar em escrever quando o
inimigo avança e, diante de nós, devasta cidades e campos, quando é preciso
fugir, afrontando os perigos do mar, para lugares de exílio que, afinal, não
põem ao abrigo das apreensões? Sob os nossos olhos, os Bárbaros incendiaram Régio;
o estreito braço de mar, que separa a Itália da Sicília, é a nossa única
proteção...”. (São Rufino de Aquiléia, 340 d. C – 410 d. C, Padre da Igreja.
Tradutor das obras dos Padres Gregos para o latim, à época vivendo na Sicília,
Itália.)
“Chega-nos
do Ocidente um rumor terrível: Roma atacada... A minha voz estrangula-se e os
soluços interrompem-me enquanto dito estas palavras. Foi conquistada, essa
cidade que conquistara o universo”. (São Jerônimo, 347-420, na época em
Constantinopla)
“Quem
poderia adivinhar que Roma se desmoronaria... e que as costas do Oriente, do
Egito e da África se encheriam de fugitivos; que Belém, a Santa, todos os dias
haveria de receber, reduzidos a mendicância, hóspedes de um e outro sexos,
outrora nobres e repletos de bens?”. (São Jerônimo, 347-420, já escrevendo de
seu mosteiro em Belém)
Encerro esta introdução assinalando
que como católico que ama entranhadamente o papa romano, sempre me causa estranheza
e dor ataques ao Sucessor de São Pedro Apóstolo. Se Francisco errou, não
podemos esquecer que Cristo prometeu aos seus sucessores a infalibilidade doutrinal,
não a pessoal. Em outro momento penso em publicar um texto que trate
exclusivamente desse tema á luz da Tradição da Igreja.
Voltando ao livro em si, quais
seriam as características principais desse projeto do globalismo/nova ordem
mundial?
“(...)
forja-se um projeto de poder global, um projeto de poder totalitário. Como tal,
intenta dar uma resposta única e universal a todas as questões que possam
pensar os seres humanos em qualquer situação em que se encontrem e qualquer que
seja o lugar onde estejam. Para conseguir isto, como é lógico, necessita-se
colonizar a inteligência e o espírito de todos os habitantes do planeta”. (...).
“(...)
o projeto de domínio global necessita fazer-se com as mentes e as consciências
daqueles a que pretende subjugar: é essa a explicação de por que falamos de uma
nova religião universal”[4].
Páginas a seguir Mons.
Sanahuja completa dizendo que:
“Esta
forma de guerra fria tem como finalidade conseguir o domínio global pela
imposição de um pensamento único, uma colonização ideológica, que tem origem
próxima no Informe Kissinger, antecedente inspirador das conferencias
internacionais dos anos 90 e dos projetos de ‘reengenharia social’ que a partir
delas se põem em marcha, na tentativa de construir uma nova sociedade sobre
bases totalmente diferentes das que conhecemos, tentando contra-arrestar e
anular lenta e discretamente toda visão transcendente do homem, para
substituí-la por um novo sistema de valores. Por isso, eu a chamo de
reengenharia social anticristã”[5].
Sanahuja nos explica que
o Informe Kissinger foi preparado pelo então Secretário de Estado dos EUA Henry
Kissinger para projetar estratégias para garantir que os EUA se mantivessem na
liderança do mundo livre de então, freando o crescimento demográfico de países
emergentes como Brasil, México, Índia, Paquistão, entre outros. Segundo
Sanahuja o Informe é um precursor das estratégias para implantação da Nova
Ordem Mundial. No fim do capítulo introdutório Mons. Sanahuja nos lembra que
parte fundamental dessa reengenharia social é a manipulação da memória das sociedades
e civilizações que se pretende manipular:
“(...)
somam-se as iniciativas de recuperação da memória histórica e da justiça
transicional. Está última inclui: processos judiciais dos responsáveis por
violações passadas de direitos humanos; comissões da verdade; programas de
reparação material e moral dos danos causados por abusos do passado; reforma
institucional das forças armadas, da polícia, do poder judicial e das
instituições estatais; iniciativas de comemoração, museus e monumentos públicos
que preservam a memória das vítimas e aumentam a consciência moral sobre os
abusos cometidos no passado”.
“É
parte também do programa de ajuda o diálogo intercultural e inter-religioso,
que na linguagem da nova ordem significa ‘religião do sentimento’, uma nova
religião, uma religião sem conteúdos imutáveis, uma religião sem dogmas”[6].
Ou seja, as discussões
acerca do aborto, ideologia de gênero e casamento gay são apenas partes de um
todo maior que abrange a memória histórica, eliminando os conceitos de tradição
e memória. Basta ver o estado de abandono de museus, arquivos, casas e centros
históricos e monumentos, mesmo em países onde dominam governos de viés
progressista e/ou liberal. Mesmo os doentes, crianças e idosos são deixados de
lado pelo mesmo motivo: porque atrapalham o “progresso” da nova sociedade, são “descartáveis”. É
preciso eliminar a memória e todos aqueles que fazem parte dela e substituí-los
por uma concepção de sociedade onde a memória e a tradição são ignoradas.
Seria muito extenso
anotar todas as passagens interessantes do livro. Selecionei apenas algumas
mais impactantes, que revelam que o “politicamente correto” (globalismo/nova
ordem mundial) propõe um mundo libertário que em nome da liberdade priva quem
discordar dessa mesma liberdade. Isso não é novo: as Revoluções Francesa (1789)
e Russa (1917) também degeneraram em pura e simples perseguição aos
refratários e discordantes. Por exemplo: ao abordar o combate ao racismo,
discriminação e intolerância, certa Convenção determinou:
“(...)
uma ampla censura de imprensa, que inclui internet e e-mails, para todos
aqueles que transmitam conteúdos considerados discriminatórios. Todo escrito ou
intervenção oral oposta ou que manifeste desconformidade com o estilo de vida
homossexual será censurada e seus autores perseguidos: ‘os Estados se
comprometem a prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas
constitucionais e com as disposições desta Convenção, todos os atos e
manifestações de discriminação e intolerância, incluindo: (...) ii. A
publicação, a circulação ou disseminação, por qualquer forma e/ou meio de
comunicação, incluída a Internet, de qualquer material que: a) defenda, promova
ou incite ao ódio, à discriminação e à intolerância’. Isto de fato inclui os
documentos da Santa Sé, o Catecismo da Igreja Católica, documentos episcopais,
homilias, artigos, estudos, reportagens em que se exponham ideias contrárias ao
estilo de vida gay”[8].
É realmente assustadora a
amplidão com que a nova ordem mundial quer forçar a criação de uma sociedade
igualitária à força, a custa da própria liberdade. Parafraseando o cardeal Robert
Sarah será o “inferno na terra”. Eu mesmo ouvi anos atrás de um conhecido, gay
assumido e militante socialista: “sou tolerante, mas não a ponto de dialogar
com alguém como você!”. Mas Sanahuja nos lembra que a melhor resposta contra o
erro é viver a radicalidade do Evangelho, a moral cristã, os sacramentos, o
matrimônio, a vida de oração (p.108).
Por outro lado, a nova
ordem mundial não poupa esforços em implantar uma nova religião moldada e dócil
aos poderes civis. Sanahuja chega a comparar a religião globalista com a
Constituição Civil do Clero (1790) da Revolução Francesa que engessou o
clero católico francês submetendo-o ao novo regime republicano, medida que não
impediu a perseguição aos católicos a partir de 1792 pelos jacobinos e seu
“Terror”:
“Não
se poupam meios para pôr as religiões a serviço da nova ordem, pressionando-as,
externa e internamente, a fim de mudar seus princípios morais e sua disciplina.
Os credos religiosos pouco importam aos funcionários da nova ordem, são um
instrumento para impor uma nova ética ou uma nova religião universal que se
assente, por um lado, no relativismo moral e, por outro, na idolatria da lei
positiva, a lei civil, fruto de consensos parlamentares ou políticos que vão
mudando com o tempo a serviço dos interesses dos que detém o poder.
Evidentemente, o grande inimigo deste programa é a imutável doutrina de Jesus
Cristo anunciada aos homens pela Igreja Católica, donde o contínuo assédio que
esta sofre”[9].
Aqui Sanahuja abre para
um dos pontos mais polêmicos do livro: a infiltração do pensamento globalista
dentro da Igreja Católica. Sanahuja trata o assunto como o “novo modernismo”,
comparando a crise atual da Igreja a crise ariana do séc. IV. Confesso aqui que
não tenho uma opinião definitiva sobre este ponto específico, já que o ofício
do historiador o impede de fazer perspectivas com segurança – o olhar do
historiador volta-se sempre ao passado, embora as reflexões sobre o passado
sempre partam dos problemas do tempo presente. Aqui ele cita uma carta do papa
Leão XIII onde o pontífice já condenava o que anos depois seria chamado de
“modernismo”:
“(...)
no assunto de que estamos falando, há ainda um perigo maior, e uma mais
manifesta oposição à doutrina e disciplina católicas, naquela opinião dos
amantes da novidade segundo a qual sustentam que se deve admitir uma sorte tal de
liberdade na Igreja que, diminuindo de alguma maneira sua supervisão e cuidado,
se permita aos fiéis seguir mais livremente o guiamento de suas próprias mentes
e o caminho de sua própria atividade. Aqueles são da opinião de que tal
liberdade tem sua contraparte na liberdade civil (...)”.
“Estes
perigos, a saber, a confusão de licença e liberdade, a paixão por discutir e
mostrar contumácia quanto a qualquer assunto possível, o suposto direito a
defender qualquer opinião que a alguém lhe agrade sobre qualquer assunto, e a
dá-la a conhecer ao mundo por meio de publicações, mantém as mentes tão
envoltas na escuridão que há agora mais que nunca uma necessidade maior do
ofício magisterial da Igreja, para que as pessoas não se esqueçam tanto da
consciência como do dever”[10].
Com esta citação Sanahuja
critica a atitude dos cristãos progressistas, mas as censuras do papa Leão XIII
também servem para muitos católicos conservadores que, para combater o
relativismo se servem das mesmas armas dos relativistas (calúnias, ataques, fake
news, etc.).
Para terminar meus
comentários ao livro de Sanahuja penso que deveria citar dois grandes papas:
João Paulo II e Bento XVI. Não nos esqueçamos que um era colaborador do outro,
ou seja: havia continuidade de pensamento entre os dois papas. Sanahuja por
isso cita extensas passagens desses papas:
“No
esforço pela transformação cristã da realidade, Deus não nos pede humanas
vitórias, pede-nos luta. ‘O cristianismo não é caminho de comodidade; antes, é
uma escalada exigente, mas iluminada pela luz de Cristo e pela grande esperança
que nasce d`Ele. Só assim, experimentando o sofrimento, conhecemos a vida em
profundidade. Em sua beleza, na grande esperança suscitada por Cristo
crucificado e Ressuscitado’”. [Bento XVI, Audiência geral 05/11/2008].
“Por
isso, continua São João Paulo II advertindo-nos de que nas circunstâncias
atuais ao dom da esperança ‘há que prestar uma atenção particular, sobretudo em
nosso tempo, no qual muitos homens e não poucos cristãos se debatem entre a
ilusão e o mito de uma capacidade infinita de auto redenção e de realização de
si mesmo e a tentação do pessimismo ao sofrer frequentes decepções e derrotas’”.
“Nossa
esperança, a esperança teologal, tem seu fundamento na vitória de Cristo sobre
o pecado e sobre a morte, na Ressurreição do Senhor. [Bento XVI, Audiência
geral 26/03/2008] Não esperamos o advento de um mundo melhor, nem sequer aquele
que poderíamos ter a ilusão de conseguir, como consequência de nosso esforço
por expandir a semente do Evangelho. Não estamos isentos de cair no otimismo
ideológico, sobretudo se buscamos o sucesso, a realização de nossos próprios
planos e desejos, ou o aumento do poder e a extensão de nossas instituições. Em
poucas palavras, o que nós imaginamos como o triunfo de Cristo”[11].
Sanahuja nos alerta que
Cristo não veio para triunfar materialmente sobre o mundo, mas sim espiritualmente.
Ou seja: quando o cristianismo parece naufragar, quando os seus inimigos
parecem triunfar é que sobrevêm a derrota dos ímpios, a vitória dos ímpios é
também o momento de sua maior derrota, porque o momento do triunfo material
revela a pobreza espiritual. “O salário do ímpio é a morte”, me disse certa vez
um senhor muito bom e sábio, pai de família. Mas Sanahuja não foi
inovador. Outros pensadores católicos antes dele disseram coisas parecidas:
“(...)
el triunfo seguro del Bien quizá no sea jamás perceptible a la observación
empírica, mientras que la presencia eficaz del Mal dejará siempre sentir su
presión y su poder. En la víspera del instante supremo en que la historia va a
detener-se, una vez llegada a su término, cuando el Cuerpo de Cristo haya
alcanzado su perfecto crecimiento, puede ser que en ese momento, a los ojos
carnales, del historiador de las instituciones y de las técnicas y la mirada de
los testigos, la tierra aparezca como un campo de ruinas y esa época como un
tiempo de fracasos”[13].
“(...)
os protagonistas da História aparente mostram-se à verdadeira luz em sua
pretensiosa nulidade. Eles estão, na realidade, empenhados em outra História, a
verdadeira, aquela pela qual Deus forma neste mundo as almas eternas que
destina a seu Reino. Deus serve-se delas como instrumento. Não é nelas que
residem os verdadeiros valores. Não é em torno delas que se edifica a História.
Deus criou o mundo para seus santos e é para eles e em função deles que a
História também adquire seu significado”.
Outra obra que poderia
ser citada aqui é o romance O senhor do mundo de Robert Hugh Benson. Nesse romance o
personagem, o último papa, entra em conflito com o Anticristo contando com
pouquíssimos apoiadores e sem nenhum apoio material. Recomendado por dois papas
(Bento XVI e Francisco) o romance mostra sob uma visão literária o final dos
tempos.
Termino meus brevíssimos
apontamentos com uma extensa citação colocada no livro por de Sanahuja, um texto
do então cardeal Ratzinger que também foi citado por outro autor de que também
eu já analisei, cardeal Robert Sarah. Nesse texto o então
cardeal hoje papa emérito faz um diagnóstico do estado da Igreja Católica no
nosso tempo, apontando problemas e algumas soluções. Vejamos:
“‘Na
primeira metade dos anos setenta’, diz Ratzinger, ‘um amigo de nosso grupo fez
uma viagem à Holanda. Ali a Igreja sempre estava dando que falar, vista por uns
como a imagem e a esperança de uma Igreja melhor para o amanhã e por outros
como um sintoma de decadência, lógica consequência da atitude assumida. Com
certa curiosidade esperávamos o relato que nosso amigo faria à sua volta. Como
era um homem leal e um preciso observador, falou-nos de todos os fenômenos da
decomposição de que já havíamos tido notícia: seminários vazios, ordens
religiosas sem vocações, sacerdotes e religiosas que em grupo dão as costas à
sua própria vocação, desaparecimento da confissão, dramática queda da
frequência na prática dominical. Naturalmente, descreveu-nos também as
expediências e novidades, que não podiam, para dizer a verdade, mudar nenhum
dos sinais de decadência, antes a reafirmavam. A verdadeira surpresa do relato
foi, no entanto, a valoração final: apesar de tudo, uma Igreja grande, porque
em nenhuma parte se observava pessimismo, todos iam ao encontro do futuro
cheios de otimismo. O fenômeno do otimismo geral para esquecer toda decadência
e toda destruição era suficiente para compensar todo o negativo”.
“Eu
fiz minhas reflexões particulares em silêncio. Que se diria de um homem de
negócios que escrevesse sempre números em vermelho, mas que, em lugar de reconhecer
suas perdas, de buscar as razoes e de opor-se com valentia, se apresentasse a
seus credores com um obstinado otimismo? Que haveria de se pensar da exaltação
de um otimismo simplesmente contrário à realidade? Tentei chegar ao fundo da
questão e examinei diversas hipóteses. O otimismo podia ser simplesmente uma
cobertura, atrás da qual se escondesse precisamente o desespero, tentando
superá-lo dessa forma. Mas podia tratar-se de algo pior: esse otimismo metódico
era produzido pelos que desejavam a destruição da velha Igreja e, com a
desculpa da reforma, queriam construir uma Igreja completamente diferente, a
seu gosto, mas não podiam começá-la para não revelar demasiado prontamente suas
intenções. Então o otimismo era uma espécie de tranquilizante para os fiéis,
com a finalidade de criar o clima adequado para desfazer, possivelmente em paz,
a mesma Igreja, e conquistar assim o domínio sobre ela. O fenômeno do otimismo
teria portanto duas faces: por um lado, uma feliz confiança aliada à cegueira
dos fiéis que se deixam acalmar com boas palavras; por outro, uma estratégia
consciente para mudar a Igreja, sem que nenhuma vontade superior – a vontade de
Deus – nos incomode inquietando nossas consciências, de maneira que nossa
própria vontade tenha a última palavra. O otimismo seria finalmente a forma de
libertar-nos da pretensão, amarga pretensão, do Deus vivo sobre nossa vida.
Este otimismo do orgulho, da apostasia, se serve do otimismo ingênuo; mais
ainda, o alimenta como se fosse a esperança certa do cristão, a divina virtude
da esperança, quando na realidade é só a parodia da fé e da esperança”.
“Refleti
igualmente sobre outra hipótese. Era possível que um tal otimismo fosse
simplesmente uma variante da perene fé liberal no progresso: o substituto
burguês da esperança perdida da fé. Cheguei até a concluir que todos estes
componentes trabalhavam conjuntamente, sem que se pudesse facilmente decidir
qual deles, quando e onde predominava sobre os outros. (...)”.
“Meu
trabalho me levou a ocupar-me do pensamento de Ernst Bloch [conhecido filósofo
marxista] (...). Para Bloch o otimismo é a forma e a expressão da fé na
história, e portanto é necessário para uma pessoa que queira servir à
liberação, para a evocação revolucionária do homem novo”.
“Enquanto
lia Bloch, pensava que o otimismo é a virtude teológica de um Deus novo e de
uma nova religião, a virtude da história divinizada, de uma história de Deus,
do grande Deus das ideologias modernas e de suas promessas. (...) na nova
religião o pessimismo é o pecado de todos os pecados, e a dúvida ante o
otimismo, ante o progresso e a utopia, é um assalto frontal ao espírito da
idade moderna, é o ataque a seu credo fundamental, sobre o qual se funda sua
segurança, que por outro lado está continuamente ameaçada pela debilidade
daquela divindade ilusória que é a história”.
“Tudo
isso me veio à mente de novo quando eclodiu o debate sobre meu livro Rapporto
sulla fede [no Brasil foi intitulado A fé em crise?], publicado em 1985. O
grito de oposição que se levantou contra este livro sem pretensões culminava
com uma acusação: é um livro pessimista. Em algum lugar se tentou até proibir a
venda, porque uma heresia deste calibre simplesmente não podia ser tolerada. Os
detentores do poder da opinião puseram o livro no índice [O Índex de
livros proibidos]. A nova inquisição fez sentir sua força. Demonstrou-se
uma vez mais que não existe pior pecado contra o espírito da época que
converter-se em rei de uma falta de otimismo. A questão não era: é verdade ou
não o que afirma? Os diagnósticos são justos ou não? Pude constatar que ninguém
se preocupava em formular tais questões fora de moda. O critério era muito
simples: ou há otimismo ou não, e em face deste critério meu livro era, sem
dúvida, uma frustração (...)”.
“Por
que digo tudo isso? Creio que é possível compreender a verdadeira essência da
esperança cristã e revivê-la, unicamente se se olha de frente para as imitações
deformadoras que tentam insinuar-se por todos os lados. A grandeza e a razão da
esperança cristã vêm à luz só quando nos libertamos do falso esplendor de suas
imitações profanas”[17].
Para Ratzinger – e também
para Sanahuja – o erro dos cristãos dos séculos XX e XXI é o de confiar em
demasia na técnica e na sociedade libertária, identificando nelas um progresso
lento porém inexorável rumo a um futuro luminoso. Pelo contrário, o cristão não
deve colocar sua esperança nos homens e no mundo presente, mas em Deus e na esperança
da vida futura fora do tempo e da história. Aqui Ratzinger e Sanahuja não nos
disseram uma novidade completa. Outros autores décadas antes havia formulado
ideias semelhantes:
“(...)
a tentação hegeliana ou marxista que faz de bom número dos nossos
contemporâneos subservientes adoradores da História. Pensam que o único mal é o
de resistir à História; que a única perdição consiste em ser rejeitado e
repudiado pela História. A História se transformou para eles [marxistas] no
Salvador e Redentor. A primeira obrigação moral, desde então, é a de ficar em
paz com a História – e ter eficácia histórica, e ser historicamente bem
sucedido. Quem não triunfa historicamente está condenado, e justamente
condenado: pecou contra a História”.
“Alguém
que, como já vimos, desempenha o seu papel na História, diverte-se com o
espetáculo e ri-se desses adoradores. Os que tomam como primeiro princípio
marchar com a História ou fazê-la marchar, e andar passo a passo com ela, desde
logo se obrigam a colaborar com todos os agentes da História; ei-los, pois,
envolvidos em perigosa promiscuidade”.
O cristão não deve temer
nadar contra a corrente, ir contra a opinião pública, sofrer ridicularização ou
perseguição, nem mesmo deve temer o fracasso material e humano, porque a
vitória final do cristão não está neste mundo, no tempo, mas além do tempo, na
eternidade. Maritain, Ratzinger e Sanahuja nos alertam que o cristão deve
sempre ser um sinal de contradição no tempo e no mundo. “Se odiaram a MIM
odiarão também a vós”, já alertava Jesus aos seus discípulos.
Por isso, por maiores que
sejam o globalismo, a nova ordem, a revolução secular nos seus formatos
LGBTQI+, feminismo radical, trans-humanismo, etc, o cristão mesmo em menor
número, em esmagadora minoria frente a colossais poderes temporais deve e pode
se manter firme, com o apoio divino do Mestre e de sua Santíssima Mãe!
Ou, como bem resumiu um
homem mais sábio e muitíssimo mais santo do que eu, precisamos sim contabilizar
os meios materiais que temos: 2 + 2... Mas nessa aritmética devemos incluir
Deus, e assim teremos: Deus + 2 + 2 =... E ele completava: “Que conta
incomensurável não resultará!” (S. Josemaría Escrivá).
Quem viver, verá!