domingo, 21 de junho de 2020

REFLETINDO SOBRE “MULHERZINHAS” – IV (postagem final)



Um dos pontos mais tensos do catolicismo contemporâneo refere-se ao ecumenismo e diálogo inter-religiosos. No espaço de apenas duas gerações (cinquenta e cinco anos desde o encerramento do Concílio Vaticano II - 1962-1965) transitamos de uma Igreja Católica “fortaleza sitiada pelo mundo moderno” e fechada ao diálogo com crentes e não crentes, para uma Igreja que aparentemente deixou de lado o apostolado e a preocupação em converter e conquistar almas para Cristo passando a aceitar tudo que o mundo tem a oferecer, mesmo que o que o mundo ofereça não coincida com os ensinamentos de Jesus.
Essa dialética da continuidade vs ruptura permeia os estudos sobre o último concílio ecumênico da Igreja Católica[1], e na minha modesta opinião nos joga para o fundo de um beco sem saída já que aqui não poderíamos nos “isentar” desse debate: ou se entende o Vaticano II como ruptura com a Tradição da Igreja Católica, inserindo o pensamento moderno secular e irreligioso dentro da Igreja – a “entrada da fumaça de Satanás pelas rachaduras da Igreja” (Papa São Paulo VI):

“Tem-se a sensação de que a fumaça de Satanás entrou dentro do templo de Deus por alguma fissura. Encontramos dúvidas, incertezas, problemáticas, inquietações, insatisfações e conflitos. Já não se confia na Igreja. (...) A dúvida entrou nas nossas consciências e entrou pelas janelas que deviam estar abertas à que, depois do Concílio [Vaticano II], viria um dia de sol para a história da Igreja, mas veio um dia de nuvens, de tempestade, de busca, de incerteza”[2].

Ou então, entendemos o Vaticano II como continuidade na História da Igreja e seus 20 concílios ecumênicos, ponto de vista defendido entre outros pelos papas dos últimos 40 anos. O debate continua, com acusações de ambos os lados.
De qualquer modo, parece que esquecemos nesses 55 anos que o primordial do católico é fazer apostolado, atrair novos prosélitos a Igreja de Jesus Cristo. Essa é a origem da palavra proselitismo: fazer prosélitos, novos iniciados na doutrina cristã. Quando professamos nosso batismo dizemos a seguinte frase do Credo Niceno-constantinopolitano: “creio na Igreja una, santa, católica e apostólica”.
Fazer apostolado é e deve ser a marca do cristão. Mas o apostolado não deve ser uma atividade bitolada e chata, como a que exercem certos cristãos irmãos de outras denominações tocando as campainhas de nossas casas nas manhãs de domingo. Para São Josemaría Escrivá o apostolado deve se realizar em ambiente de: “confidência e amizade”, um a um, cara a cara, com a maior naturalidade possível, sempre respeitando a sensibilidade e a formação psicológica e intelectual do amigo.

No nosso romance Mulherzinhas há um belo exemplo de uma católica que, sem respeitos humanos mas cheia de delicadeza ensina a evangélica Amy o que é o rosário, a imemorial devoção à Nossa Senhora onde o católico reza Aves-Marias intercaladas por Pai-Nossos, meditando os mistérios da Encarnação, Vida Pública, Paixão e Morte de Jesus.
Amy parou na casa da “tia March” após a doença de sua irmã Beth. Lá, entre os diversos afazeres domésticos que ela teve que assumir para agradar a tia, um belo dia ela vê dependurado num espelho algo que nunca havia visto: um colar de contas de madeira. Nesse momento a empregada da tia, católica francesa, aparece e as duas começam a conversar sobre o estranho colar:

_Se fosse para escolher, qual preferia, Mademoiselle? – perguntou Ester, que sempre estava junto dela para guardar as coisas preciosas, depois de haverem sido vistas.
_Penso que preferiria esta espécie de colar – respondeu Amy, contemplando com grande admiração um cordão de ouro, de contas de ébano, do qual pendia pesada cruz daquele metal.
_Quanto a mim, desejaria o mesmo, não, porém, para usar como colar; para mim isto é um rosário e usá-lo-ia como boa católica – disse Ester olhando invejosamente para o lindo enfeite.
_Devem-se utilizar do mesmo modo aquelas contas de madeira perfumada que vi penduradas em seu espelho? – perguntou Amy.
_Sim, perfeitamente, são para se rezar. É muito agradável aos santos que alguém use um rosário tão lindo como este, em vez de algum outro sem valor.
_Parece que suas orações confortam muito, Ester, pois anda sempre calma e satisfeita. Desejaria ser assim.
_Se Mademoiselle fosse católica, encontraria o verdadeiro conforto espiritual; como isto, porém não se dá, seria bom que reservasse parte do dia para meditar e orar, como fazia a boa senhora que eu servia antes de Madame [tia March]. Possuía uma pequena capela e nesse lugar achava consolo para muitas dores.
_Seria bom para mim proceder assim também? – perguntou Amy que na sua solidão sentia a falta de um auxílio qualquer e achava que iria esquecer o seu livrinho agora que Beth não estava perto para trazê-lo à sua lembrança.
_Seria excelente e encantador; e eu de boa vontade lhe prepararei para esse fim, se quiser, o pequeno quarto de vestir. Nada diga a Madame, mas quando ela adormecer vá para lá e sente-se sozinha um instante a tomar boas resoluções e a pedir a Deus que salve sua irmãzinha [Beth, que nesse momento estava doente de escarlatina][3].

O resultado da conversa com a empregada não se fez esperar. Amy passa a rezar mais, pelas intenções de sua família:

A menina fazia tudo isso com sinceridade porque, só e ausente do seu lar, sentia a necessidade de uma bondosa mão que a guiasse com segurança e por isso voltara-se instintivamente para o Amigo [Deus] forte e carinhoso, cujo amor paternal envolvia suavemente sua filhinha adorada. Sentiu a falta da mãe [sra. March] para guia-la e compreendê-la; tendo, porém, aprendido para quem devia recorrer, diligenciava encontrar o bom caminho para segui-lo confiante[4].

Mais adiante Amy aparece pedindo a intercessão de Maria de Nazaré para toda a sua família.

Como podemos ver, uma conversa simples e despretensiosa pode levar uma amiga, parente, conhecido, colega de trabalho a se aproximar um pouco mais de Deus. Não devemos nos acovardar e dizer que isso de evangelizar não é com a gente, que não temos tempo, não levamos jeito pra coisa... etc. São Josemaría nos dizia que nem todos podem ser sábios, mas todos podem ser santos, apóstolos de Apóstolos. Nas palavras do vigário regional do Opus Dei no Brasil:

“A maioria de nós não se imagina sobre um palco contando como passamos a ser mais generosos com o nosso tempo após termos crescido em intimidade com Cristo, ou como a descoberta da importância de ganhar virtudes mudou o nosso comportamento. No entanto, são justamente esses pequenos testemunhos do dia a dia que tocam os corações, quando feitos com sinceridade, num clima de abertura e confiança”[5].


[1] A bibliografia produzida nos últimos 55 anos sobre o Vaticano II é vastíssima, e mesmo um artigo não seria capaz de abordar minimamente bem os autores, as linhas interpretativas e as pesquisas sobre o maior evento da Igreja Católica no séc. XX. Aqui deixo indicadas duas obras que resumem minimamente as visões sobre o evento conciliar: BEOZZO, J. O. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965. São Paulo, Paulinas: 2005; MATTEI, Roberto de. O Concílio Vaticano II: uma história nunca escrita. São Paulo: Ambientes e Costumes, 2013.
[2] Paulo VI. Homilia no IX aniversário da coroação, 29 de junho de 1972. Apud: MATTEI, Roberto de. O Concílio Vaticano II: uma história nunca escrita. São Paulo: Ambientes e Costumes, 2013, p. 471-472
[3] ALCOTT, Louise May. Mulherzinhas. 5ª edição revista. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 200-201.
[4] ALCOTT, Louise May. Mulherzinhas. 5ª edição revista. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 202.
[5] CARVALHEIRO, Fábio Henrique. Pescadores de homens: o apostolado cristão para quem vive no meio do mundo. São Paulo: Quadrante, 2020, p. 56.

domingo, 14 de junho de 2020

REFLETINDO SOBRE “MULHERZINHAS” – III


No post anterior tratei da convivência no lar e seus desafios. Para hoje selecionei outra passagem onde o tema é o matrimonio e a escolha do par.
Não nos enganemos: no universo de Mulherzinhas as moçoilas sonham em casar e ter filhos. Sim... muito opressor para nossos ouvidos acostumados com a realização individual e material, pensando que: “a mulher tem tanta necessidade de homem quanto de um peixe!”. No mundo de Mulherzinhas você abre mão de coisas boas em si na busca de um bem maior, seja o bem estar dos filhos, o controle do próprio temperamento, entre outras coisas.
Mas Alcott coloca na boca da sra. March uma série de alertas para as molecas que andavam a pairar no ar sonhando com o “príncipe encantado”. É um banho de realismo:

_Quero que minhas filhas sejam belas, bem educadas e boas; que sejam admiradas, amadas e respeitadas; que tenham uma mocidade feliz, façam um bom casamento e tenham uma vida útil e venturosa, tendo apenas os cuidados e tristezas que Deus for servido dispensar-lhes. Ser escolhida e amada por um homem digno é a coisa melhor e mais suave que possa desejar uma mulher; e eu tenho sincera esperança de que minhas filhas hão de conhecer este prazer. É muito natural pensar nele, Meg; muito conveniente aguardá-lo e muito prudente prepara-lo; assim, quando chegar esse tempo feliz, você poderá sentir-se, apta para cumprir os seus deveres e pronta para a felicidade. Minhas filhas queridas, eu tenho ambições; não, porém, de fazer de vocês um joguete do mundo, casando-as com homens ricos meramente porque são ricos, para terem palácios esplendidos que não são lares, porque lhes faltará o amor. O dinheiro é coisa necessária e preciosa – e, quando bem empregado, um metal nobre – porém jamais desejo que o julguem o primeiro ou o único bem a procurar. Prefiro vê-las esposas de homens pobres, mas felizes, amadas, satisfeitas, a vê-las em tronos de rainhas mas degradadas a seus próprios olhos e sem paz de espírito.
_Belle diz que as moças pobres não acham casamento se não se esforçarem para isso – disse Meg suspirando.
_Então ficaremos todas solteironas – replicou Jo com firmeza.
_Justamente, Jo; é preferível ser uma solteirona velha e feliz a uma esposa desgraçada ou moça desenvolta à caça de um marido – afirmou a sra. March. Não se aborreça, Meg; a pobreza raras vezes afugenta ao homem que ama com sinceridade. Algumas das mulheres mais felizes e mais honradas que conheço foram moças pobres, porém tão dignas de ser amadas que não ficaram solteironas. Deixem estas coisas para o tempo oportuno[1].

Josemaría Escrivá que nos ensinava que: “Sonhai e ficareis aquém”. O idealismo sempre fica abaixo da realidade porque não tem raízes concretas. A vida a dois é feita de um sem número de pequenas coisas aparentemente desprezíveis: deixar tudo limpo e asseado, organizado e digno; ser lento ao julgar e mais lento ainda em repreender, mas quando for preciso dar a repreensão faça-o sem demora, porém com caridade e paciência; procurar fazer sempre boa cara porque: “um santo triste é um triste santo” (s. Josemaría Escrivá).

Em outro momento memorável do livro as irmãs declaram que estavam cansadas das tarefas cotidianas de costurar, cozinhar, limpar, organizar a casa e estudar. Aí a mãe, com uma sabedoria verdadeiramente salomônica decide fazer “uma experiencia”: por uma semana deixar a casa ao ritmo que as filhas queriam dando espaço para as coisas favoritas delas. Os resultados não demoraram a aparecer:

_Sim; queira que vocês compreendessem que o conforto depende do fiel cumprimento do dever de cada qual. Enquanto Hannah [a governanta] e eu trabalhamos para vocês, acham-se muito bem, embora eu não julgue que sejam muito felizes; eu pensava, pois, que era preciso uma liçãozinha para demonstrar-lhes o que acontece quando a gente pensa egoisticamente em si só. Não sentiram que é mais agradável auxiliarem-se umas às outras, ter ocupações diárias, que tornam os lazeres mais suaves quando chega sua hora, suportar com paciência os trabalhos, e que assim a casa se pode tornar mais agradável e alegre para todas nós?
_Sim, mamãe, tem razão – exclamaram as irmãs.
_Então permitam que as aconselhe a retomar de novo seus ‘fardos’; conquanto pareçam às vezes pesados, são bons para todos, tornando-se leves quando os aprendemos a carregar. O trabalho é agradável e prodigaliza abundância para todos; resguarda-nos do aborrecimento e dos males; é útil para a saúde e para o espírito, dá-nos o sentimento do poder e da independência, muito melhor que o dinheiro ou o luxo[2].

Para Alcott o trabalho tem valor porque dignifica o homem, embora tenha um valor predominantemente ascético, de mortificação corporal. O trabalho enrijece o caráter, o torna mais ordeiro e responsável com o uso dos bens materiais.
Já o catolicismo não vê as coisas assim. Durante uma tertúlia perguntaram a S. Josemaría Escrivá se, além do trabalho que outra mortificação se devia viver para crescer na vida cristã. E o “Nosso Padre” (como nós o chamamos carinhosamente no Opus Dei) de imediato disse que não, que o trabalho dignifica o homem porque é o meio para ele atingir sua perfeição espiritual, é oração e meio de santificação pessoal, dos seus colegas de trabalho, e também para conseguir prestígio profissional. A consequência dessa maior laboriosidade é a melhora na eficácia apostólica: o bom exemplo na vida atrai almas para Cristo.
A vida cotidiana tem um valor imenso para Deus e para o bem de todos seja cuidando dos filhos, trabalhando no computador, cimentando tijolos, varrendo ruas ou pilotando um carro de corridas. “A grandeza da vida corrente” era o título de uma das mais conhecidas homilias de s. Josemaría Escrivá, Fundador do Opus Dei, e a sua maneira norma de conduta de Alcott.
A felicidade não se constrói com castelos no ar, mas com pessoas reais de carne e osso com boas disposições de caráter que colocavam no momento certo as mãos na massa.


[1] ALCOTT, Louise May. Mulherzinhas. 5ª edição revista. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 105.
[2] ALCOTT, Louise May. Mulherzinhas. 5ª edição revista. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 125.

terça-feira, 9 de junho de 2020

REFLETINDO SOBRE “MULHERZINHAS” - II


Como eu havia dito no dia 01/06/2020, nos próximos dias tratarei do livro de Alcott Mulherzinhas. Faço isso porque, como já havia dito na postagem anterior, o romance na sua aparente monotonia nos coloca questões candentes sobre o comportamento e a vida familiar. Hoje o ponto em destaque é a convivência entre irmãs e a vida em família.
No momento exato em que escrevo a convivência familiar é posta sob uma dura prova. O isolamento social testa até o limite a capacidade de convivermos com pessoas diversas e próximas em ambientes limitados, somada a uma crise social, econômica, psíquica e espiritual. E aí, inevitavelmente, as brigas ocorrem.
É assim até nas melhores famílias.
No universo de Mulherzinhas ocorre algo parecido entre as irmãs Amy e Jo. Jo gosta de escrever e prepara um livro de contos e prosa para mostrar ao pai ausente na guerra, mas ela se desentende com a irmã mais nova e a menina, de raiva, queima o precioso livro. Uma discussão ocorre, como não poderia deixar de ser, e as duas irmãs prometem nunca mais se falar na vida. No dia seguinte Amy e Jo saem para patinar no lago congelado, cada uma seguindo por uma direção diferente. Jo percebe que o gelo no meio do lago está fino e perigoso, mas ainda aborrecida pela perda do precioso livro, não avisa a irmã que cai na àgua congelante, e, se não fosse a ação imediata do vizinho ela teria morrido. Após o resgate e os primeiros socorros a Amy, Jo demonstra remorso pela briga do dia anterior. É nesse momento que a mãe se aproxima dela para conversar:

Quando Amy estava dormindo confortada e a casa de aquietara, a sra. March, sentada à beira do leito, chamou Jo para junto de si, pensando-lhe as mãos feridas.
_Tem certeza que ela está salva? – sussurrou Jo, fitando cheia de remorso a loura cabecinha que podia ter desaparecido de sua vista para sempre, sob o gelo traiçoeiro.
_Completamente fora de perigo, minha filha; não se feriu e nem sequer se resfriou, creio eu; foi bom vocês terem tido o cuidado de embrulhá-la e traze-la imediatamente para casa – disse-lhe a mãe ternamente.
_Foi Laurie [o vizinho] quem fez tudo; o que fiz foi deixa-la ir para o meio do rio; eu somente auxiliei. Se ela morresse, mamãe, a culpa seria minha; - e Jo atirou-se à cama, derramando lágrimas de arrependimento, contando tudo o que acontecera, recriminando-se pela dureza de seu coração e chorando de ventura por lhe ter sido poupado o terrível castigo que poderia ter recebido. – Foi o meu maldito gênio! Procuro modificá-lo, mas quando penso que o dominei, ele irrompe ainda pior. Oh, mamãe, que devo fazer? Exclamava a chorar, a pobre e desesperada Jo.
_Vele e ore, minha filha; não se canse nunca de o tentar, nem julgue nunca impossível reparar sua falta – disse a sra. March, achegando-a de seu ombro e beijando-lhe a face úmida com tanta ternura que Jo prorrompeu num choro mais convulsivo ainda.

A seguir Jo pergunta a mãe qual o segredo para ela manter-se serena diante das crises familiares, e a resposta da sra. March é surpreendente (pelo menos para mim):

_Minha boa mãe ajudava-me...
_como a senhora faz, interrompeu Jo com um beijo de gratidão.
_Eu, porém, perdi-a quando era muito mais nova que você, e durante muitos anos tive de lutar sozinha, porque era bastante orgulhosa para confessar minha fraqueza a alguém. Foi uma luta, Jo, e derramei muitas lágrimas amargas pelos meus defeitos pois, a despeito de meus esforços, parecia que jamais os venceria. Apareceu então seu pai e eu senti-me tão feliz que achei facílimo tornar-me boa. Logo, porém, que, em nossa pobreza, me vi cercada de quatro criancinhas, novamente começaram os ímpetos antigos, porque não sou paciente por natureza e era para mim um sofrimento ver minhas filhas passarem necessidades.
_Pobre mamãezinha! E quem a auxiliou, então?
_Seu pai, Jo. Jamais perdeu a paciência, nunca teve dúvidas nem queixas – sempre esperanças e esforços e tão alegre sempre, que sentiria vexame quem procedesse de outra maneira diante dele. Auxiliava-me, confortava-me, mostrando-me que eu devia praticar todas as virtudes que eu desejava que minhas filhas possuíssem, pois seria o exemplo para elas. Foi mais fácil esforçar-me por amor de vocês que por mim mesma (...)[1].

Um homem muito mais sábio do que eu já havia dito: “A alegria tem raízes em forma de cruz” (s. Josemaría Escrivá). A Sra. March aprendeu a duras penas que sem sacrifício não conseguiria vencer-se e conseguir criar as filhas. O resultado final foi ótimo: quatro filhas ajuizadas, mas a custo de sacrifícios e esquecimento próprio. Arranca rabos são inevitáveis, mas o que podemos fazer é procurar controlar os nervos, pedir auxílios a quem tem critério, e se possível orar a Deus pedindo luzes e paciência, porque se dependesse da nossa parte, nada feito!
Alguém poderia dizer que a Sra. March deveria ter “largado mão” e saído para curtir a vida loka. De fato, mas será que qualquer um de nós seria o que é hoje sem o auxílio silencioso e amoroso dos pais ou de algum outro responsável que estava de olho para que não nos faltasse nada? A verdade é que nenhum de nós seria o que é hoje sem alguém que assumisse responsabilidades ou dirigisse alguma instituição que desse apoio a quem pudesse cuidar de nós.

E termino por aqui.


[1] ALCOTT, Louise May. Mulherzinhas. 5ª edição revista. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, pp. 84-86.

sábado, 6 de junho de 2020

Poder global e religião universal II


Globalismo, nova ordem mundial. Essas palavras vêm me assombrando há anos, desde 2010 quando eu participava das reuniões nos “porões” da Igreja Nossa Senhora do Paraíso para distribuir folhetos contra o aborto e a eleição de Dilma Rousseff. Confesso que poucas vezes eu me dei o trabalho de estudar o assunto a fundo. Quando muito eu procurava me informar sobre as estratégias abortistas junto a amigos que militam pela “causa da vida humana” e nesses meios essa expressão é utilizada frequentemente. No Instituto Raimundo Lúlio (2011-2013) eu me deparei com esse livro no estoque da editora. O título e a capa me hipnotizavam com a sua Torre de Babel enorme, mas após um ano os livros foram recolhidos e nunca mais o vi.
Mais recentemente (2015-2016) em uma das minhas visitas a casa dos fundadores de uma excelente comunidade aqui de São Paulo (que não posso revelar por motivos de confidencialidade) conversávamos sobre a “crise da Igreja” e as estratégias dos inimigos de Deus em estabelecer uma nova sociedade atéia e contrária a liberdade religiosa. Lá pelas tantas entramos num assunto caro a eles: o cumprimento das profecias do Apocalipse. Lembro-me que me disseram que num voo de volta ao Brasil conheceram Mons Sanahuja que o alertou sobre os perigos que rondavam a Igreja e o próprio Papa, e de como os “inimigos da Igreja” estavam dentro da própria Igreja. “Foi o próprio Sanahuja quem nos disse!”, me lembro bem dele ter dito isso.
Desde então minha curiosidade acerca desse livro e seu conteúdo só aumentou, mas como andava ocupado em estudar os teóricos da História da Igreja, entender o Globalismo e a Nova Ordem Mundial sempre ficavam em segundo plano. Mas, em fins de 2019 durante o 4º Fórum Famílias Novas ocorrido no Mosteiro de São Bento no centro de São Paulo capital eu vi o livro em nova edição à venda pelo Centro Dom Bosco. Não resisti e comprei. O livro ficou dormitando por meses no armário engrossando a “fila” de leituras.
Mas aí veio o coronavírus com todo o seu triste corolário de medidas sanitárias, isolamento social, fechamento de estabelecimentos comerciais, mortes, crise política, crise na saúde, etc. E aí eu me vi na necessidade de me manter mentalmente sadio, e para isso comecei a “debulhar” as minhas leituras e fichamentos parados até que chegou a vez de Poder global e religião universal II. Nessa altura já estava em começos de maio de 2020, com a crise de saúde atingindo picos até então insuspeitos, e nas redes sociais os apoiadores do presidente Bolsonaro indignados com as restritivas medidas de isolamento, a falta de transparência do governo chinês em esclarecer as origens da pandemia, a OMS se tornando o exemplo a não ser seguido... E aí os termos globalismo e nova ordem mundial voltaram a permear o vocabulário dos meus conhecidos e amigos que veem na pandemia um instrumento para implantação da nova sociedade secular e materialista.

Mons. Sanahuja se identificava como jornalista. O jornalismo investigativo anda raro nos dias atuais e admito que a leitura do livro de Mons. Sanahuja impressiona pelo rigor e seriedade com que foi produzido. O livro teve duas edições: uma primeira em 2009 e outra definitiva em 2016, mesmo ano de seu falecimento. Essas informações são importantes para entendermos o livro e o tratamento com que o tema foi abordado em 2009 e 2016, como podemos perceber pelos prefácios. Primeiro o de 2016:
“A confusão chegou a níveis inimagináveis, pelas mãos de instâncias que deveriam dar segurança e luz, confirmando na fé os cristãos. Pelo contrário, na Igreja abundam as dúvidas, se pactua com aqueles que não a amam, ignorando, relegando e até punindo aqueles que pretendem ser bons discípulos de Jesus. O Cardeal Antonelli dizia há poucos meses: ‘O Papa mesmo está consciente de que, ao avançar por este caminho, se correm riscos: ‘Compreendo os que preferem uma pastoral mais rígida que não dê lugar a confusão alguma. Mas creio sinceramente que Jesus quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente seu ensinamento objetivo, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de manchar-se com a alma do caminho’ (Amoris Laetitia, n 308). Podem-se prever riscos e abusos tanto entre os pastores como entre os fiéis, por exemplo: confusão entre responsabilidade subjetiva e verdade objetiva, entre lei da gradualidade e gradualidade da lei; relativismo moral e ética da situação; valoração do divórcio e da nova união como moralmente lícitos, desincentivo da preparação para o casamento, desmotivação dos fiéis separados, acesso à Eucaristia sem as necessárias disposições; dificuldades e perplexidades dos sacerdotes no discernimento; incerteza e ansiedade nos fiéis’”.
“Assim, encontramo-nos com muitos católicos desmobiliados e acovardados, aos quais os acontecimentos destes últimos três anos converteram, no melhor dos casos, em indiferentes”[1].

E o primeiro prefácio de 2009, onde Mons Sanahuja apenas advertia os católicos acomodados:

“À timidez de muitos católicos, soma-se a ditadura do politicamente correto, ameaças muito mais sutis que as de outrora. Pretende-se a cumplicidade da religião, que por sua vez está sendo exilada dos campos da ação e do pensamento. A nova ditadura corrompe as consciências individuais, e falsifica quase todas as esferas da existência humana”[2].
(...)
“O esforço realizado para ordenar estas notas e apontamentos me seria compensado se, como consequência de sua leitura, alguns rezassem mais, estudassem mais, pensassem mais e agissem sem respeitos humanos para romper o politicamente correto, os lugares-comuns e o encantamento mundano”[3].

Para Mons. Sanahuja em menos de uma década desde a primeira edição do livro (2009) a situação piorou muito, e ele apontava a eleição do Papa Francisco (2013) como um fato de crise dentro do catolicismo. O tom de alerta perpassa boa parte do livro e explica porque o editor da edição brasileira tratou de colocar no título a parte “II” e não simplesmente indicar uma segunda edição, já que Sanahuja praticamente reescreveu o livro. Como não li a edição de 2009, não posso afirmar categoricamente, mas comparando as partes do texto com citações anteriores a 2009 e as posteriores, notei como o tom do texto mudava.
Quero deixar claro que o cristão não pode ser um ingênuo que pense que o mundo é cor de rosa e ignora os perigos que rondam a Igreja e seus fiéis. Alertar é tarefa que aliás Sanahuja executa com um rigor intelectual incomum, mesmo na universidade. Mas o centro da vida do cristão deve ser a oração e o apostolado, pontos que aliás Sanahuja destaca num capítulo especial, o 7º: Notas para um comportamento cristão. Desarmar teorias da conspiração; denunciar a falta de transparência de entidades que deveriam cuidar de mulheres desamparadas, crianças, velhos e doentes, mas que infelizmente se dobram a interesses escusos de ricaços e conglomerados internacionais para promover o aborto, o infanticídio e a eutanásia é dever grave do cristão, mas não é o principal. O principal é ser um “discípulo do mestre Jesus”: ter vida de oração, frequentar os sacramentos, promover o bem comum, etc.
Quanto ao papado de Francisco, bem, aqui penso como historiador. Somente quando seu pontificado acabar teremos um mínimo de condições de avaliar sua obra e seu legado. Se serve de consolo, saiba que a História da Igreja já registrou o sentimento de desamparo e crise em muitos fiéis e grandes santos. Seguem apenas alguns exemplos:

“Os tempos estão tão perturbados para nós! Quem pode pensar em escrever quando o inimigo avança e, diante de nós, devasta cidades e campos, quando é preciso fugir, afrontando os perigos do mar, para lugares de exílio que, afinal, não põem ao abrigo das apreensões? Sob os nossos olhos, os Bárbaros incendiaram Régio; o estreito braço de mar, que separa a Itália da Sicília, é a nossa única proteção...”. (São Rufino de Aquiléia, 340 d. C – 410 d. C, Padre da Igreja. Tradutor das obras dos Padres Gregos para o latim, à época vivendo na Sicília, Itália.)

“Chega-nos do Ocidente um rumor terrível: Roma atacada... A minha voz estrangula-se e os soluços interrompem-me enquanto dito estas palavras. Foi conquistada, essa cidade que conquistara o universo”. (São Jerônimo, 347-420, na época em Constantinopla)

“Quem poderia adivinhar que Roma se desmoronaria... e que as costas do Oriente, do Egito e da África se encheriam de fugitivos; que Belém, a Santa, todos os dias haveria de receber, reduzidos a mendicância, hóspedes de um e outro sexos, outrora nobres e repletos de bens?”. (São Jerônimo, 347-420, já escrevendo de seu mosteiro em Belém)

Encerro esta introdução assinalando que como católico que ama entranhadamente o papa romano, sempre me causa estranheza e dor ataques ao Sucessor de São Pedro Apóstolo. Se Francisco errou, não podemos esquecer que Cristo prometeu aos seus sucessores a infalibilidade doutrinal, não a pessoal. Em outro momento penso em publicar um texto que trate exclusivamente desse tema á luz da Tradição da Igreja.

Voltando ao livro em si, quais seriam as características principais desse projeto do globalismo/nova ordem mundial?

“(...) forja-se um projeto de poder global, um projeto de poder totalitário. Como tal, intenta dar uma resposta única e universal a todas as questões que possam pensar os seres humanos em qualquer situação em que se encontrem e qualquer que seja o lugar onde estejam. Para conseguir isto, como é lógico, necessita-se colonizar a inteligência e o espírito de todos os habitantes do planeta”. (...).
“(...) o projeto de domínio global necessita fazer-se com as mentes e as consciências daqueles a que pretende subjugar: é essa a explicação de por que falamos de uma nova religião universal”[4].

Páginas a seguir Mons. Sanahuja completa dizendo que:

“Esta forma de guerra fria tem como finalidade conseguir o domínio global pela imposição de um pensamento único, uma colonização ideológica, que tem origem próxima no Informe Kissinger, antecedente inspirador das conferencias internacionais dos anos 90 e dos projetos de ‘reengenharia social’ que a partir delas se põem em marcha, na tentativa de construir uma nova sociedade sobre bases totalmente diferentes das que conhecemos, tentando contra-arrestar e anular lenta e discretamente toda visão transcendente do homem, para substituí-la por um novo sistema de valores. Por isso, eu a chamo de reengenharia social anticristã”[5].

Sanahuja nos explica que o Informe Kissinger foi preparado pelo então Secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger para projetar estratégias para garantir que os EUA se mantivessem na liderança do mundo livre de então, freando o crescimento demográfico de países emergentes como Brasil, México, Índia, Paquistão, entre outros. Segundo Sanahuja o Informe é um precursor das estratégias para implantação da Nova Ordem Mundial. No fim do capítulo introdutório Mons. Sanahuja nos lembra que parte fundamental dessa reengenharia social é a manipulação da memória das sociedades e civilizações que se pretende manipular:

“(...) somam-se as iniciativas de recuperação da memória histórica e da justiça transicional. Está última inclui: processos judiciais dos responsáveis por violações passadas de direitos humanos; comissões da verdade; programas de reparação material e moral dos danos causados por abusos do passado; reforma institucional das forças armadas, da polícia, do poder judicial e das instituições estatais; iniciativas de comemoração, museus e monumentos públicos que preservam a memória das vítimas e aumentam a consciência moral sobre os abusos cometidos no passado”.
“É parte também do programa de ajuda o diálogo intercultural e inter-religioso, que na linguagem da nova ordem significa ‘religião do sentimento’, uma nova religião, uma religião sem conteúdos imutáveis, uma religião sem dogmas”[6].

Ou seja, as discussões acerca do aborto, ideologia de gênero e casamento gay são apenas partes de um todo maior que abrange a memória histórica, eliminando os conceitos de tradição e memória. Basta ver o estado de abandono de museus, arquivos, casas e centros históricos e monumentos, mesmo em países onde dominam governos de viés progressista e/ou liberal. Mesmo os doentes, crianças e idosos são deixados de lado pelo mesmo motivo: porque atrapalham o “progresso” da nova sociedade[7], são “descartáveis”. É preciso eliminar a memória e todos aqueles que fazem parte dela e substituí-los por uma concepção de sociedade onde a memória e a tradição são ignoradas.
Seria muito extenso anotar todas as passagens interessantes do livro. Selecionei apenas algumas mais impactantes, que revelam que o “politicamente correto” (globalismo/nova ordem mundial) propõe um mundo libertário que em nome da liberdade priva quem discordar dessa mesma liberdade. Isso não é novo: as Revoluções Francesa (1789) e Russa (1917) também degeneraram em pura e simples perseguição aos refratários e discordantes. Por exemplo: ao abordar o combate ao racismo, discriminação e intolerância, certa Convenção determinou:

“(...) uma ampla censura de imprensa, que inclui internet e e-mails, para todos aqueles que transmitam conteúdos considerados discriminatórios. Todo escrito ou intervenção oral oposta ou que manifeste desconformidade com o estilo de vida homossexual será censurada e seus autores perseguidos: ‘os Estados se comprometem a prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, todos os atos e manifestações de discriminação e intolerância, incluindo: (...) ii. A publicação, a circulação ou disseminação, por qualquer forma e/ou meio de comunicação, incluída a Internet, de qualquer material que: a) defenda, promova ou incite ao ódio, à discriminação e à intolerância’. Isto de fato inclui os documentos da Santa Sé, o Catecismo da Igreja Católica, documentos episcopais, homilias, artigos, estudos, reportagens em que se exponham ideias contrárias ao estilo de vida gay”[8].

É realmente assustadora a amplidão com que a nova ordem mundial quer forçar a criação de uma sociedade igualitária à força, a custa da própria liberdade. Parafraseando o cardeal Robert Sarah será o “inferno na terra”. Eu mesmo ouvi anos atrás de um conhecido, gay assumido e militante socialista: “sou tolerante, mas não a ponto de dialogar com alguém como você!”. Mas Sanahuja nos lembra que a melhor resposta contra o erro é viver a radicalidade do Evangelho, a moral cristã, os sacramentos, o matrimônio, a vida de oração (p.108).
Por outro lado, a nova ordem mundial não poupa esforços em implantar uma nova religião moldada e dócil aos poderes civis. Sanahuja chega a comparar a religião globalista com a Constituição Civil do Clero (1790) da Revolução Francesa que engessou o clero católico francês submetendo-o ao novo regime republicano, medida que não impediu a perseguição aos católicos a partir de 1792 pelos jacobinos e seu “Terror”:

“Não se poupam meios para pôr as religiões a serviço da nova ordem, pressionando-as, externa e internamente, a fim de mudar seus princípios morais e sua disciplina. Os credos religiosos pouco importam aos funcionários da nova ordem, são um instrumento para impor uma nova ética ou uma nova religião universal que se assente, por um lado, no relativismo moral e, por outro, na idolatria da lei positiva, a lei civil, fruto de consensos parlamentares ou políticos que vão mudando com o tempo a serviço dos interesses dos que detém o poder. Evidentemente, o grande inimigo deste programa é a imutável doutrina de Jesus Cristo anunciada aos homens pela Igreja Católica, donde o contínuo assédio que esta sofre”[9].

Aqui Sanahuja abre para um dos pontos mais polêmicos do livro: a infiltração do pensamento globalista dentro da Igreja Católica. Sanahuja trata o assunto como o “novo modernismo”, comparando a crise atual da Igreja a crise ariana do séc. IV. Confesso aqui que não tenho uma opinião definitiva sobre este ponto específico, já que o ofício do historiador o impede de fazer perspectivas com segurança – o olhar do historiador volta-se sempre ao passado, embora as reflexões sobre o passado sempre partam dos problemas do tempo presente. Aqui ele cita uma carta do papa Leão XIII onde o pontífice já condenava o que anos depois seria chamado de “modernismo”:

“(...) no assunto de que estamos falando, há ainda um perigo maior, e uma mais manifesta oposição à doutrina e disciplina católicas, naquela opinião dos amantes da novidade segundo a qual sustentam que se deve admitir uma sorte tal de liberdade na Igreja que, diminuindo de alguma maneira sua supervisão e cuidado, se permita aos fiéis seguir mais livremente o guiamento de suas próprias mentes e o caminho de sua própria atividade. Aqueles são da opinião de que tal liberdade tem sua contraparte na liberdade civil (...)”.
“Estes perigos, a saber, a confusão de licença e liberdade, a paixão por discutir e mostrar contumácia quanto a qualquer assunto possível, o suposto direito a defender qualquer opinião que a alguém lhe agrade sobre qualquer assunto, e a dá-la a conhecer ao mundo por meio de publicações, mantém as mentes tão envoltas na escuridão que há agora mais que nunca uma necessidade maior do ofício magisterial da Igreja, para que as pessoas não se esqueçam tanto da consciência como do dever”[10].

Com esta citação Sanahuja critica a atitude dos cristãos progressistas, mas as censuras do papa Leão XIII também servem para muitos católicos conservadores que, para combater o relativismo se servem das mesmas armas dos relativistas (calúnias, ataques, fake news, etc.).
Para terminar meus comentários ao livro de Sanahuja penso que deveria citar dois grandes papas: João Paulo II e Bento XVI. Não nos esqueçamos que um era colaborador do outro, ou seja: havia continuidade de pensamento entre os dois papas. Sanahuja por isso cita extensas passagens desses papas:

“No esforço pela transformação cristã da realidade, Deus não nos pede humanas vitórias, pede-nos luta. ‘O cristianismo não é caminho de comodidade; antes, é uma escalada exigente, mas iluminada pela luz de Cristo e pela grande esperança que nasce d`Ele. Só assim, experimentando o sofrimento, conhecemos a vida em profundidade. Em sua beleza, na grande esperança suscitada por Cristo crucificado e Ressuscitado’”. [Bento XVI, Audiência geral 05/11/2008].
“Por isso, continua São João Paulo II advertindo-nos de que nas circunstâncias atuais ao dom da esperança ‘há que prestar uma atenção particular, sobretudo em nosso tempo, no qual muitos homens e não poucos cristãos se debatem entre a ilusão e o mito de uma capacidade infinita de auto redenção e de realização de si mesmo e a tentação do pessimismo ao sofrer frequentes decepções e derrotas’”.
“Nossa esperança, a esperança teologal, tem seu fundamento na vitória de Cristo sobre o pecado e sobre a morte, na Ressurreição do Senhor. [Bento XVI, Audiência geral 26/03/2008] Não esperamos o advento de um mundo melhor, nem sequer aquele que poderíamos ter a ilusão de conseguir, como consequência de nosso esforço por expandir a semente do Evangelho. Não estamos isentos de cair no otimismo ideológico, sobretudo se buscamos o sucesso, a realização de nossos próprios planos e desejos, ou o aumento do poder e a extensão de nossas instituições. Em poucas palavras, o que nós imaginamos como o triunfo de Cristo”[11].

Sanahuja nos alerta que Cristo não veio para triunfar materialmente sobre o mundo, mas sim espiritualmente. Ou seja: quando o cristianismo parece naufragar, quando os seus inimigos parecem triunfar é que sobrevêm a derrota dos ímpios, a vitória dos ímpios é também o momento de sua maior derrota, porque o momento do triunfo material revela a pobreza espiritual. “O salário do ímpio é a morte”, me disse certa vez um senhor muito bom e sábio, pai de família[12]. Mas Sanahuja não foi inovador. Outros pensadores católicos antes dele disseram coisas parecidas:

“(...) el triunfo seguro del Bien quizá no sea jamás perceptible a la observación empírica, mientras que la presencia eficaz del Mal dejará siempre sentir su presión y su poder. En la víspera del instante supremo en que la historia va a detener-se, una vez llegada a su término, cuando el Cuerpo de Cristo haya alcanzado su perfecto crecimiento, puede ser que en ese momento, a los ojos carnales, del historiador de las instituciones y de las técnicas y la mirada de los testigos, la tierra aparezca como un campo de ruinas y esa época como un tiempo de fracasos”[13].

“(...) os protagonistas da História aparente mostram-se à verdadeira luz em sua pretensiosa nulidade. Eles estão, na realidade, empenhados em outra História, a verdadeira, aquela pela qual Deus forma neste mundo as almas eternas que destina a seu Reino. Deus serve-se delas como instrumento. Não é nelas que residem os verdadeiros valores. Não é em torno delas que se edifica a História. Deus criou o mundo para seus santos e é para eles e em função deles que a História também adquire seu significado”[14].

Outra obra que poderia ser citada aqui é o romance O senhor do mundo de Robert Hugh Benson[15]. Nesse romance o personagem, o último papa, entra em conflito com o Anticristo contando com pouquíssimos apoiadores e sem nenhum apoio material. Recomendado por dois papas (Bento XVI e Francisco) o romance mostra sob uma visão literária o final dos tempos.
Termino meus brevíssimos apontamentos com uma extensa citação colocada no livro por de Sanahuja, um texto do então cardeal Ratzinger que também foi citado por outro autor de que também eu já analisei, cardeal Robert Sarah[16]. Nesse texto o então cardeal hoje papa emérito faz um diagnóstico do estado da Igreja Católica no nosso tempo, apontando problemas e algumas soluções. Vejamos:

“‘Na primeira metade dos anos setenta’, diz Ratzinger, ‘um amigo de nosso grupo fez uma viagem à Holanda. Ali a Igreja sempre estava dando que falar, vista por uns como a imagem e a esperança de uma Igreja melhor para o amanhã e por outros como um sintoma de decadência, lógica consequência da atitude assumida. Com certa curiosidade esperávamos o relato que nosso amigo faria à sua volta. Como era um homem leal e um preciso observador, falou-nos de todos os fenômenos da decomposição de que já havíamos tido notícia: seminários vazios, ordens religiosas sem vocações, sacerdotes e religiosas que em grupo dão as costas à sua própria vocação, desaparecimento da confissão, dramática queda da frequência na prática dominical. Naturalmente, descreveu-nos também as expediências e novidades, que não podiam, para dizer a verdade, mudar nenhum dos sinais de decadência, antes a reafirmavam. A verdadeira surpresa do relato foi, no entanto, a valoração final: apesar de tudo, uma Igreja grande, porque em nenhuma parte se observava pessimismo, todos iam ao encontro do futuro cheios de otimismo. O fenômeno do otimismo geral para esquecer toda decadência e toda destruição era suficiente para compensar todo o negativo”.
“Eu fiz minhas reflexões particulares em silêncio. Que se diria de um homem de negócios que escrevesse sempre números em vermelho, mas que, em lugar de reconhecer suas perdas, de buscar as razoes e de opor-se com valentia, se apresentasse a seus credores com um obstinado otimismo? Que haveria de se pensar da exaltação de um otimismo simplesmente contrário à realidade? Tentei chegar ao fundo da questão e examinei diversas hipóteses. O otimismo podia ser simplesmente uma cobertura, atrás da qual se escondesse precisamente o desespero, tentando superá-lo dessa forma. Mas podia tratar-se de algo pior: esse otimismo metódico era produzido pelos que desejavam a destruição da velha Igreja e, com a desculpa da reforma, queriam construir uma Igreja completamente diferente, a seu gosto, mas não podiam começá-la para não revelar demasiado prontamente suas intenções. Então o otimismo era uma espécie de tranquilizante para os fiéis, com a finalidade de criar o clima adequado para desfazer, possivelmente em paz, a mesma Igreja, e conquistar assim o domínio sobre ela. O fenômeno do otimismo teria portanto duas faces: por um lado, uma feliz confiança aliada à cegueira dos fiéis que se deixam acalmar com boas palavras; por outro, uma estratégia consciente para mudar a Igreja, sem que nenhuma vontade superior – a vontade de Deus – nos incomode inquietando nossas consciências, de maneira que nossa própria vontade tenha a última palavra. O otimismo seria finalmente a forma de libertar-nos da pretensão, amarga pretensão, do Deus vivo sobre nossa vida. Este otimismo do orgulho, da apostasia, se serve do otimismo ingênuo; mais ainda, o alimenta como se fosse a esperança certa do cristão, a divina virtude da esperança, quando na realidade é só a parodia da fé e da esperança”.
“Refleti igualmente sobre outra hipótese. Era possível que um tal otimismo fosse simplesmente uma variante da perene fé liberal no progresso: o substituto burguês da esperança perdida da fé. Cheguei até a concluir que todos estes componentes trabalhavam conjuntamente, sem que se pudesse facilmente decidir qual deles, quando e onde predominava sobre os outros. (...)”.
“Meu trabalho me levou a ocupar-me do pensamento de Ernst Bloch [conhecido filósofo marxista] (...). Para Bloch o otimismo é a forma e a expressão da fé na história, e portanto é necessário para uma pessoa que queira servir à liberação, para a evocação revolucionária do homem novo”.
“Enquanto lia Bloch, pensava que o otimismo é a virtude teológica de um Deus novo e de uma nova religião, a virtude da história divinizada, de uma história de Deus, do grande Deus das ideologias modernas e de suas promessas. (...) na nova religião o pessimismo é o pecado de todos os pecados, e a dúvida ante o otimismo, ante o progresso e a utopia, é um assalto frontal ao espírito da idade moderna, é o ataque a seu credo fundamental, sobre o qual se funda sua segurança, que por outro lado está continuamente ameaçada pela debilidade daquela divindade ilusória que é a história”.
“Tudo isso me veio à mente de novo quando eclodiu o debate sobre meu livro Rapporto sulla fede [no Brasil foi intitulado A fé em crise?], publicado em 1985. O grito de oposição que se levantou contra este livro sem pretensões culminava com uma acusação: é um livro pessimista. Em algum lugar se tentou até proibir a venda, porque uma heresia deste calibre simplesmente não podia ser tolerada. Os detentores do poder da opinião puseram o livro no índice [O Índex de livros proibidos]. A nova inquisição fez sentir sua força. Demonstrou-se uma vez mais que não existe pior pecado contra o espírito da época que converter-se em rei de uma falta de otimismo. A questão não era: é verdade ou não o que afirma? Os diagnósticos são justos ou não? Pude constatar que ninguém se preocupava em formular tais questões fora de moda. O critério era muito simples: ou há otimismo ou não, e em face deste critério meu livro era, sem dúvida, uma frustração (...)”.
“Por que digo tudo isso? Creio que é possível compreender a verdadeira essência da esperança cristã e revivê-la, unicamente se se olha de frente para as imitações deformadoras que tentam insinuar-se por todos os lados. A grandeza e a razão da esperança cristã vêm à luz só quando nos libertamos do falso esplendor de suas imitações profanas”[17].

Para Ratzinger – e também para Sanahuja – o erro dos cristãos dos séculos XX e XXI é o de confiar em demasia na técnica e na sociedade libertária, identificando nelas um progresso lento porém inexorável rumo a um futuro luminoso. Pelo contrário, o cristão não deve colocar sua esperança nos homens e no mundo presente, mas em Deus e na esperança da vida futura fora do tempo e da história. Aqui Ratzinger e Sanahuja não nos disseram uma novidade completa. Outros autores décadas antes havia formulado ideias semelhantes:

“(...) a tentação hegeliana ou marxista que faz de bom número dos nossos contemporâneos subservientes adoradores da História. Pensam que o único mal é o de resistir à História; que a única perdição consiste em ser rejeitado e repudiado pela História. A História se transformou para eles [marxistas] no Salvador e Redentor. A primeira obrigação moral, desde então, é a de ficar em paz com a História – e ter eficácia histórica, e ser historicamente bem sucedido. Quem não triunfa historicamente está condenado, e justamente condenado: pecou contra a História”.
“Alguém que, como já vimos, desempenha o seu papel na História, diverte-se com o espetáculo e ri-se desses adoradores. Os que tomam como primeiro princípio marchar com a História ou fazê-la marchar, e andar passo a passo com ela, desde logo se obrigam a colaborar com todos os agentes da História; ei-los, pois, envolvidos em perigosa promiscuidade”[18].

O cristão não deve temer nadar contra a corrente, ir contra a opinião pública, sofrer ridicularização ou perseguição, nem mesmo deve temer o fracasso material e humano, porque a vitória final do cristão não está neste mundo, no tempo, mas além do tempo, na eternidade. Maritain, Ratzinger e Sanahuja nos alertam que o cristão deve sempre ser um sinal de contradição no tempo e no mundo. “Se odiaram a MIM odiarão também a vós”, já alertava Jesus aos seus discípulos.
Por isso, por maiores que sejam o globalismo, a nova ordem, a revolução secular nos seus formatos LGBTQI+, feminismo radical, trans-humanismo, etc, o cristão mesmo em menor número, em esmagadora minoria frente a colossais poderes temporais deve e pode se manter firme, com o apoio divino do Mestre e de sua Santíssima Mãe!
Ou, como bem resumiu um homem mais sábio e muitíssimo mais santo do que eu, precisamos sim contabilizar os meios materiais que temos: 2 + 2... Mas nessa aritmética devemos incluir Deus, e assim teremos: Deus + 2 + 2 =... E ele completava: “Que conta incomensurável não resultará!” (S. Josemaría Escrivá).

Quem viver, verá!


[1] p. 13-14.
[2] p. 19.
[3] p. 21.
[4] p. 23.
[5] p. 25.
[6] p. 29.
[7] p. 32.
[8] p. 73-74.
[9] p. 144.
[10] Papa Leão XIII, Carta Testem benevolentiae ao Card. James Gibbons, 22/01/1899. Apud: p. 167-168.
[11] p. 272-273.
[12] O falecido desembargador de SP Dr. José Geraldo Barreto, morto em junho de 2014 após lutar contra um câncer de intestino. Deixo registrada aqui minha saudade.
[13] MARROU, Henri-Irenée. Teologia de la historia. Madri: RIALP, 1968, p. 98.
[14] DANIÉLOU, Jean. Sobre o mistério da história: a esfera e a cruz. São Paulo: Herder, 1964, p. 92.
[15] BENSON, Robert Hugh. O senhor do mundo. São Paulo: Ecclesiae, 2013.
[16] SARAH, Cardeal Robert. – DIAT, Nicolas. A noite se aproxima e o dia já declinou. São Paulo: Fons Sapientiae, 2019.
[17] RATZINGER, Joseph. Mirar a Cristo, EDICEP, Valencia, 2005, p. 45-55. Apud: SANAHUJA, op. cit., p. 271-273.
[18] MARITAIN, Jacques. Sobre a filosofia da história. São Paulo: Herder, 1962, p. 69.