O amigo que lê minhas mensagens pelas redes sociais logo perceberá que a publicação de hoje é longa e densa, mas infelizmente é necessário que seja assim. O ecumenismo, pelo menos como eu o aprendi após longos anos de estudos e pesquisas, exige isso: conhecer bem sua própria fé e a fé do outro.
Não recebemos conhecimentos por infusão
nem por osmose!
À distância de dezesseis anos analisei
o decreto sobre ecumenismo emanado pelo Vaticano II em 1964, seguido dos dois
diretórios que aplicavam o decreto: o primeiro publicado entre os anos de 1967-1970
e o segundo em 1994.
O concílio mal havia iniciado e, logo
na primeira congregação geral – o nome dado a reunião dos participantes,
ou padres-conciliares - inspirados pela rebelião do cardeal Liénart,
recusaram-se a votar os documentos pacientemente preparados pelas comissões -pré-conciliares
nos mais de quatro anos anteriores:
Após a primeira Congregação Geral
de outubro de 1962, o documento sobre De Oecumenismo foi dividido, dando
origem a cinco outros: Decreto Unitatis Redintegratio sobre o ecumenismo;
Decreto Orientalium Ecclesiarum sobre as Igrejas orientais; Decreto Ad
Gentes sobre o esforço missionário; Declaração Dignitatis Humanae sobre
a liberdade religiosa; Declaração Nostra Aetate sobre as religiões
não-cristãs, além de se encontrarem referências em outros documentos
conciliares.
O decreto Unitatis Redintegratio:
sobre o ecumenismo foi aprovado na 3ª sessão de 1964 e se posicionou desta forma
entre os demais:
A reintegração da unidade entre
todos os cristãos é um dos objetivos principais do Sagrado Sínodo Ecumênico
Vaticano II[1]
Os teólogos e padres conciliares
que o trabalharam lembraram que o próprio Secretariado pela Unidade dos
Cristãos foi uma das primeiras sub-comissões do pré-concílio e que assim,
já nos seus preparativos, o concílio era planejado para discutir a unidade dos
cristãos. Até aqui, poderíamos levantar a suposição de que o documento não
traria novidades, mas tudo mudou quando o decreto comentou o seguinte:
E também, por obra do Espírito
Santo, surgiu, entre nossos irmãos separados, um movimento sempre mais amplo
para restaurar a unidade de todos os cristãos. Este movimento de unidade é
chamado movimento ecumênico[2].
Esse ponto era fundamental, pois
mostrou o reconhecimento da Igreja Católica Romana ao CMI (Conselho Mundial
de Igrejas), ao dizer que o Espírito Santo suscitou o movimento ecumênico
fora da Igreja Católica, reconhecendo assim sua validade. Desse modo o
decreto superava as discussões tratadas nas encíclicas Mortalium Animos e Humani
Generis e permitia a participação dos católicos tanto no movimento quanto no
diálogo ecumênicos.
Outro ponto chamativo é o que
reconhecia a culpabilidade de membros tanto da Igreja Católica, quanto das
demais confissões na origem das divisões. Aqui, o decreto visava superar o
maniqueísmo que era recorrente entre as confissões e que imputava a uma ou
outra, a culpa pelas divisões:
Nesta una e única Igreja de Deus,
já desde os primórdios, surgiram algumas cisões, que o Apóstolo [Paulo] censura
como gravemente condenáveis. Dissensões mais amplas, porém, nasceram nos
séculos posteriores. Comunidades não pequenas separaram-se da plena comunhão da
Igreja Católica. Algumas vezes não sem culpa dos homens de ambas as partes.
Contudo, os que agora em tais Comunidades nascem e são imbuídos na fé em Cristo
não podem ser arguidos do pecado da separação, e a Igreja Católica os abraça
com fraterna reverência e amor[3].
O principal meio para atingir a tão
almejada unidade é a oração:
Em algumas circunstâncias
peculiares, como por ocasião das orações prescritas ‘pro unitate’ e em reuniões
ecumênicas, é lícito e até desejável que os católicos se associem aos irmãos
separados na oração. Tais preces comuns são certamente um meio muito eficaz
para impetrar a graça da unidade. São uma genuína manifestação dos vínculos
pelos quais ainda estão unidos os católicos e os irmãos separados: ‘Onde dois
ou três estão congregados em meu nome, ali estou eu no meio deles’ (Mt 18,20)[4].
No mesmo parágrafo, o decreto faz
um alerta: o perigo da Communicatio in sacris, a Intercomunhão, na qual
os fiéis de uma ou outra congregação receberiam os sacramentos que representam
a unidade:
Todavia não é lícito considerar a
intercomunhão (communicatio in sacris) como um meio a ser aplicado
indiscriminadamente na restauração da unidade dos Cristãos. Esta intercomunhão
depende precípuamente de dois princípios: da unidade da Igreja que ela deve
significar e da participação nos meios da graça. A significação da unidade
proíbe, na maioria das vezes, a intercomunhão. A busca da graça, às vezes, a
recomenda. Sobre o modo concreto de agir decida prudentemente a autoridade
do Bispo local, considerando todas as circunstâncias dos tempos, lugares e pessoas,
a não ser que outra coisa seja determinada pela conferência episcopal, segundo
seus próprios estatutos, ou pela Santa Sé[5]
O decreto lembra que, por mais que
os católicos devessem se esforçar em buscar a unidade, teriam de reconhecer que
ela só seria possível num porvir que não era possível definir. Portanto, a
unidade sempre seria um sonho incompleto.
Em seguida, o documento se divide
em duas partes: a primeira trata dos colóquios com as Igrejas Ortodoxas. Com
relação aos ortodoxos o decreto lembra que, em princípio, poucas são as
discrepâncias entre as duas grandes comunidades:
Como essas Igrejas, embora
separadas, tem verdadeiros sacramentos, principalmente, porém em virtude da
sucessão apostólica, o Sacerdócio e a Eucaristia, ainda se unem mais
intimamente conosco. Por isso, alguma comunicação nas coisas sagradas não só é
possível, mas até aconselhável, dadas as oportunas circunstâncias e com
aprovação da autoridade eclesiástica[6].
Assim, os problemas de
intercomunhão, que tratamos acima, estariam ausentes [ou melhor dizendo, menos salientes]
do particular contato com os Ortodoxos. Por fim, o decreto trata das
comunidades, que o documento chama de cristãos das comunidades ocidentais, ou
traduzindo para uma linguagem mais próxima, os protestantes. O documento
reconhece que os pontos de desacordo com os protestantes são maiores que com os
ortodoxos, embora o imperativo pela Unidade seja o mesmo:
As Igrejas e Comunidades eclesiais
que se separaram da Sede Apostólica Romana ou naquela grave situação iniciada
no Ocidente, já pelos fins da Idade Média, ou em tempos posteriores, continuam
contudo ligados à Igreja Católica pelos laços de uma peculiar afinidade e
obrigação por causa da diuturna convivência do povo cristão na comunhão
eclesiástica durante os séculos anteriores[7]
Aprovados os últimos documentos
conciliares ao final de 1965, iniciava-se o chamado pós-concílio. Vinha agora a
tarefa de aplicar os dezesseis documentos nas dioceses. O Secretariado [para a Unidade
dos Cristãos] foi elevado ao status de Pontifício Conselho para a Unidade dos
Cristãos, passando a fazer parte da Cúria Romana.
Uma das primeiras tarefas do Pontifício
Conselho foi produzir um documento que permitisse a aplicação das normas sobre
ecumenismo, nascendo o Diretório Ecumênico, que foi publicado em duas
partes: a primeira, chamada Ad Totam Ecclesiam[8], publicada em 1967, tratava da
aplicação geral de Unitatis Redintegratio à vida das dioceses. Nessa primeira
parte, o documento tratava da instituição das comissões diocesanas para o
ecumenismo:
Parece mui oportuno que em várias
dioceses reunidas ou ainda, onde o pedir a situação, em cada diocese; seja
instituído um conselho, uma comissão ou um secretariado que, por mandato da
Conferência Episcopal ou do Ordinário do lugar, se dedique ao progresso do
Ecumenismo[9].
O documento continuava dizendo o
seguinte a respeito das comissões diocesanas:
Esta comissão deve estabelecer
contatos mútuos com instituições ou obras ecumênicas já existentes ou que se
vão constituir; utilizar quanto possível o seu concurso, e pôr-se à inteira
disposição das outras obras diocesanas ou iniciativas particulares, de sorte
que mutuamente se informem e trabalhem em comum acordo[10].
Logo a seguir, o documento passava
a tratar da pastoral de ecumenismo, em particular os seguintes pontos: o batismo
entre cristãos, a oração comum e a intercomunhão. Sobre a oração comum, o
documento destacava a obrigação que todos os católicos têm de incentivar o
ecumenismo:
[...] todo cristão, mesmo que não
viva entre os irmãos separados, toma parte, sempre e em toda a parte, no
movimento ecumênico, conformando toda a sua vida cristã ao espírito do
Evangelho inculcado pelo Concílio Vaticano II sem nada excluir do patrimônio
cristão comum[11].
Aqui, o Diretório ressaltava o
papel fundamental da oração em comum entre os cristãos de diversas congregações
acima de outras práticas em comum: [...] as orações em comum devem em
primeiro lugar ter como objetivo a restauração da unidade entre os cristãos[12].
Anos depois, em 1970, a segunda
parte veio à luz, chamando-se Spiritus Domini[13], tratando da reestruturação dos
seminários e cursos de teologia à luz do ecumenismo. Nessa segunda parte, o
documento tratou mais a fundo da questão da formação de especialistas em
ecumenismo definindo o seguinte:
A ação ecumênica a que nos
referimos tem por finalidade: fazer com que os alunos e os professores adquiram
um conhecimento mais profundo da fé, da espiritualidade e de toda a vida e
doutrina da Igreja Católica, a fim de que possam tomar parte no diálogo
ecumênico com maior perspicácia e mais fruto, segundo as próprias
possibilidades; atrair a atenção deles para esta renovação interior da Igreja, que
é de grande utilidade para a promoção da unidade entre os cristãos e, também, para
tudo aquilo que, tanto na vida pessoal deles como na da Igreja, impede ou retarda
o progresso para a unidade (UR 4,6 e 7); proporcionar aos professores e aos alunos
um conhecimento maior das outras Igrejas ou Comunidades, a fim de que compreendam
e apreciem melhor o que une e também o que separa os cristãos (UR 3); e, por
fim, como estas atividades não apresentam um caráter exclusivamente intelectual,
levar os que nelas participam a terem consciência de que, promover a unidade
dos cristãos, é uma obrigação, estimulá-los a trabalharem mais eficazmente para
a consecução deste fim, e induzi-los a darem ao mundo moderno, na medida das próprias
possibilidades, o testemunho comum dos cristãos[14].
Em particular, o documento lembrava
o papel que a disciplina histórica tem dentro do diálogo ecumênico: apontar as
origens e desdobramentos das divisões entre os cristãos:
O modo de ensinar a história deve
ser revisto de tal modo que, tratando-se de uma sociedade cristã, se dê a
devida atenção às diversas comunidades cristãs, no que diz respeito a toda a
sua vida e à sua mentalidade[15]
Em 1993 foi publicado um novo
diretório[16] superando o anterior em amplitude e
profundidade. O atual diretório divide-se em cinco grandes partes: o primeiro
capítulo procura situar a Igreja Católica dentro do movimento ecumênico; a
seguir, no capítulo dois, [trata d]os órgãos católicos de ecumenismo; no
capítulo terceiro trata da formação para o ecumenismo; o capítulo quarto trata
exclusivamente das atividades em comum entre os cristãos que compõem o que no
capítulo anterior, definimos como pastoral de ecumenismo; e por fim trata, no
capítulo quinto, da cooperação entre os cristãos.
Apesar de publicado no ano de 1993
o novo diretório chamava a atenção para a novidade do tema ecumenismo, que
achamos interessante destacar: As situações de que o ecumenismo se ocupa não
têm muitas vezes precedentes, variando de lugar para lugar e de época para
época[17]. Assim o decreto reafirmava um ponto
que havíamos destacado: a importância de estudos sobre o ecumenismo, pelo
simples fato de ele ser muito pouco conhecido. Outro ponto a se destacar é o
papel dos leigos:
Dada a importância do papel dos
leigos na Igreja e na sociedade, os leigos responsáveis pela ação ecumênica
devem ser encorajados a desenvolver contatos e permutas com as outras Igrejas e
Comunidades Eclesiais, seguindo as normas deste Diretório[18].
Em resumo: o ecumenismo para ser bem
compreendido necessita de especialistas sobre o assunto, estudiosos, teólogos,
historiadores da Igreja. Ainda há um longo e tortuoso caminho a ser percorrido!
Escrevo estas densas linhas no domingo
de ramos de 2021. Abre-se a Semana Santa, a mais importante do ano para todos
os cristãos, onde reviveremos aqueles dias tensos onde Jesus, por plena e total
entrega de amor, morreu na Cruz e redimiu os nossos pecados.
Não podemos seguir indiferentes!
Que a sobriedade e a prudência, mais
que palavras de ordem e espírito de cruzada, orientem os cristãos pelo restante
deste séc. XXI!
[1] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 01.
[2] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 01.
[3] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 03.
[4] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 08.
[5] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 08.
[6] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 15.
[7] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 19.
[8] Cf. ‘Diretório Universal’, in: Coleção
Documentos Pontifícios N°167. Petrópolis, Vozes. 1967.
[9] Diretório ecumênico, Parte I, No. 3.
[10] Diretório ecumênico, Parte I, No. 4.
[11] Diretório ecumênico, Parte I, No. 21.
[12] Diretório ecumênico, Parte I, No. 34.
[13] Cf. SEDOC - Junho de 1970.
Petrópolis, Vozes. pp. 1503-1530.
[14] Spiritus Domini, Cap. I, No. 02, in: SEDOC -
Junho de 1970. Petrópolis, Vozes. pp. 1503-1530.
[15] Spiritus Domini, Cap. I, No. 03, in: SEDOC -
Junho de 1970. Petrópolis, Vozes. pp. 1503-1530.
[16] Diretório para a aplicação dos princípios
e normas sobre o ecumenismo. São
Paulo. Paulinas. 1994.
[17] Diretório para a aplicação dos
princípios e normas sobre o ecumenismo. No. 30.
[18] Diretório para a aplicação dos
princípios e normas sobre o ecumenismo. No. 86.