domingo, 28 de março de 2021

ECUMENISMO: ORIGENS – parte 04. Análise do decreto Unitatis redintegratio e dos diretórios ecumênicos.

O amigo que lê minhas mensagens pelas redes sociais logo perceberá que a publicação de hoje é longa e densa, mas infelizmente é necessário que seja assim. O ecumenismo, pelo menos como eu o aprendi após longos anos de estudos e pesquisas, exige isso: conhecer bem sua própria fé e a fé do outro.

Não recebemos conhecimentos por infusão nem por osmose!

À distância de dezesseis anos analisei o decreto sobre ecumenismo emanado pelo Vaticano II em 1964, seguido dos dois diretórios que aplicavam o decreto: o primeiro publicado entre os anos de 1967-1970 e o segundo em 1994.

O concílio mal havia iniciado e, logo na primeira congregação geral – o nome dado a reunião dos participantes, ou padres-conciliares - inspirados pela rebelião do cardeal Liénart, recusaram-se a votar os documentos pacientemente preparados pelas comissões -pré-conciliares nos mais de quatro anos anteriores:

 

Após a primeira Congregação Geral de outubro de 1962, o documento sobre De Oecumenismo foi dividido, dando origem a cinco outros: Decreto Unitatis Redintegratio sobre o ecumenismo; Decreto Orientalium Ecclesiarum sobre as Igrejas orientais; Decreto Ad Gentes sobre o esforço missionário; Declaração Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa; Declaração Nostra Aetate sobre as religiões não-cristãs, além de se encontrarem referências em outros documentos conciliares.

O decreto Unitatis Redintegratio: sobre o ecumenismo foi aprovado na 3ª sessão de 1964 e se posicionou desta forma entre os demais:

 

A reintegração da unidade entre todos os cristãos é um dos objetivos principais do Sagrado Sínodo Ecumênico Vaticano II[1]

 

Os teólogos e padres conciliares que o trabalharam lembraram que o próprio Secretariado pela Unidade dos Cristãos foi uma das primeiras sub-comissões do pré-concílio e que assim, já nos seus preparativos, o concílio era planejado para discutir a unidade dos cristãos. Até aqui, poderíamos levantar a suposição de que o documento não traria novidades, mas tudo mudou quando o decreto comentou o seguinte:

 

E também, por obra do Espírito Santo, surgiu, entre nossos irmãos separados, um movimento sempre mais amplo para restaurar a unidade de todos os cristãos. Este movimento de unidade é chamado movimento ecumênico[2].

 

Esse ponto era fundamental, pois mostrou o reconhecimento da Igreja Católica Romana ao CMI (Conselho Mundial de Igrejas), ao dizer que o Espírito Santo suscitou o movimento ecumênico fora da Igreja Católica, reconhecendo assim sua validade. Desse modo o decreto superava as discussões tratadas nas encíclicas Mortalium Animos e Humani Generis e permitia a participação dos católicos tanto no movimento quanto no diálogo ecumênicos.

Outro ponto chamativo é o que reconhecia a culpabilidade de membros tanto da Igreja Católica, quanto das demais confissões na origem das divisões. Aqui, o decreto visava superar o maniqueísmo que era recorrente entre as confissões e que imputava a uma ou outra, a culpa pelas divisões:

 

Nesta una e única Igreja de Deus, já desde os primórdios, surgiram algumas cisões, que o Apóstolo [Paulo] censura como gravemente condenáveis. Dissensões mais amplas, porém, nasceram nos séculos posteriores. Comunidades não pequenas separaram-se da plena comunhão da Igreja Católica. Algumas vezes não sem culpa dos homens de ambas as partes. Contudo, os que agora em tais Comunidades nascem e são imbuídos na fé em Cristo não podem ser arguidos do pecado da separação, e a Igreja Católica os abraça com fraterna reverência e amor[3].

 

O principal meio para atingir a tão almejada unidade é a oração:

 

Em algumas circunstâncias peculiares, como por ocasião das orações prescritas ‘pro unitate’ e em reuniões ecumênicas, é lícito e até desejável que os católicos se associem aos irmãos separados na oração. Tais preces comuns são certamente um meio muito eficaz para impetrar a graça da unidade. São uma genuína manifestação dos vínculos pelos quais ainda estão unidos os católicos e os irmãos separados: ‘Onde dois ou três estão congregados em meu nome, ali estou eu no meio deles’ (Mt 18,20)[4].

 

No mesmo parágrafo, o decreto faz um alerta: o perigo da Communicatio in sacris, a Intercomunhão, na qual os fiéis de uma ou outra congregação receberiam os sacramentos que representam a unidade:

 

Todavia não é lícito considerar a intercomunhão (communicatio in sacris) como um meio a ser aplicado indiscriminadamente na restauração da unidade dos Cristãos. Esta intercomunhão depende precípuamente de dois princípios: da unidade da Igreja que ela deve significar e da participação nos meios da graça. A significação da unidade proíbe, na maioria das vezes, a intercomunhão. A busca da graça, às vezes, a recomenda. Sobre o modo concreto de agir decida prudentemente a autoridade do Bispo local, considerando todas as circunstâncias dos tempos, lugares e pessoas, a não ser que outra coisa seja determinada pela conferência episcopal, segundo seus próprios estatutos, ou pela Santa Sé[5]

 

O decreto lembra que, por mais que os católicos devessem se esforçar em buscar a unidade, teriam de reconhecer que ela só seria possível num porvir que não era possível definir. Portanto, a unidade sempre seria um sonho incompleto.

Em seguida, o documento se divide em duas partes: a primeira trata dos colóquios com as Igrejas Ortodoxas. Com relação aos ortodoxos o decreto lembra que, em princípio, poucas são as discrepâncias entre as duas grandes comunidades:

 

Como essas Igrejas, embora separadas, tem verdadeiros sacramentos, principalmente, porém em virtude da sucessão apostólica, o Sacerdócio e a Eucaristia, ainda se unem mais intimamente conosco. Por isso, alguma comunicação nas coisas sagradas não só é possível, mas até aconselhável, dadas as oportunas circunstâncias e com aprovação da autoridade eclesiástica[6].

 

Assim, os problemas de intercomunhão, que tratamos acima, estariam ausentes [ou melhor dizendo, menos salientes] do particular contato com os Ortodoxos. Por fim, o decreto trata das comunidades, que o documento chama de cristãos das comunidades ocidentais, ou traduzindo para uma linguagem mais próxima, os protestantes. O documento reconhece que os pontos de desacordo com os protestantes são maiores que com os ortodoxos, embora o imperativo pela Unidade seja o mesmo:

 

As Igrejas e Comunidades eclesiais que se separaram da Sede Apostólica Romana ou naquela grave situação iniciada no Ocidente, já pelos fins da Idade Média, ou em tempos posteriores, continuam contudo ligados à Igreja Católica pelos laços de uma peculiar afinidade e obrigação por causa da diuturna convivência do povo cristão na comunhão eclesiástica durante os séculos anteriores[7]

 

Aprovados os últimos documentos conciliares ao final de 1965, iniciava-se o chamado pós-concílio. Vinha agora a tarefa de aplicar os dezesseis documentos nas dioceses. O Secretariado [para a Unidade dos Cristãos] foi elevado ao status de Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos, passando a fazer parte da Cúria Romana.

Uma das primeiras tarefas do Pontifício Conselho foi produzir um documento que permitisse a aplicação das normas sobre ecumenismo, nascendo o Diretório Ecumênico, que foi publicado em duas partes: a primeira, chamada Ad Totam Ecclesiam[8], publicada em 1967, tratava da aplicação geral de Unitatis Redintegratio à vida das dioceses. Nessa primeira parte, o documento tratava da instituição das comissões diocesanas para o ecumenismo:

 

Parece mui oportuno que em várias dioceses reunidas ou ainda, onde o pedir a situação, em cada diocese; seja instituído um conselho, uma comissão ou um secretariado que, por mandato da Conferência Episcopal ou do Ordinário do lugar, se dedique ao progresso do Ecumenismo[9].

 

O documento continuava dizendo o seguinte a respeito das comissões diocesanas:

 

Esta comissão deve estabelecer contatos mútuos com instituições ou obras ecumênicas já existentes ou que se vão constituir; utilizar quanto possível o seu concurso, e pôr-se à inteira disposição das outras obras diocesanas ou iniciativas particulares, de sorte que mutuamente se informem e trabalhem em comum acordo[10].

 

Logo a seguir, o documento passava a tratar da pastoral de ecumenismo, em particular os seguintes pontos: o batismo entre cristãos, a oração comum e a intercomunhão. Sobre a oração comum, o documento destacava a obrigação que todos os católicos têm de incentivar o ecumenismo:

 

[...] todo cristão, mesmo que não viva entre os irmãos separados, toma parte, sempre e em toda a parte, no movimento ecumênico, conformando toda a sua vida cristã ao espírito do Evangelho inculcado pelo Concílio Vaticano II sem nada excluir do patrimônio cristão comum[11].

 

Aqui, o Diretório ressaltava o papel fundamental da oração em comum entre os cristãos de diversas congregações acima de outras práticas em comum: [...] as orações em comum devem em primeiro lugar ter como objetivo a restauração da unidade entre os cristãos[12].

 

Anos depois, em 1970, a segunda parte veio à luz, chamando-se Spiritus Domini[13], tratando da reestruturação dos seminários e cursos de teologia à luz do ecumenismo. Nessa segunda parte, o documento tratou mais a fundo da questão da formação de especialistas em ecumenismo definindo o seguinte:

 

A ação ecumênica a que nos referimos tem por finalidade: fazer com que os alunos e os professores adquiram um conhecimento mais profundo da fé, da espiritualidade e de toda a vida e doutrina da Igreja Católica, a fim de que possam tomar parte no diálogo ecumênico com maior perspicácia e mais fruto, segundo as próprias possibilidades; atrair a atenção deles para esta renovação interior da Igreja, que é de grande utilidade para a promoção da unidade entre os cristãos e, também, para tudo aquilo que, tanto na vida pessoal deles como na da Igreja, impede ou retarda o progresso para a unidade (UR 4,6 e 7); proporcionar aos professores e aos alunos um conhecimento maior das outras Igrejas ou Comunidades, a fim de que compreendam e apreciem melhor o que une e também o que separa os cristãos (UR 3); e, por fim, como estas atividades não apresentam um caráter exclusivamente intelectual, levar os que nelas participam a terem consciência de que, promover a unidade dos cristãos, é uma obrigação, estimulá-los a trabalharem mais eficazmente para a consecução deste fim, e induzi-los a darem ao mundo moderno, na medida das próprias possibilidades, o testemunho comum dos cristãos[14].

 

Em particular, o documento lembrava o papel que a disciplina histórica tem dentro do diálogo ecumênico: apontar as origens e desdobramentos das divisões entre os cristãos:

 

O modo de ensinar a história deve ser revisto de tal modo que, tratando-se de uma sociedade cristã, se dê a devida atenção às diversas comunidades cristãs, no que diz respeito a toda a sua vida e à sua mentalidade[15]

 

Em 1993 foi publicado um novo diretório[16] superando o anterior em amplitude e profundidade. O atual diretório divide-se em cinco grandes partes: o primeiro capítulo procura situar a Igreja Católica dentro do movimento ecumênico; a seguir, no capítulo dois, [trata d]os órgãos católicos de ecumenismo; no capítulo terceiro trata da formação para o ecumenismo; o capítulo quarto trata exclusivamente das atividades em comum entre os cristãos que compõem o que no capítulo anterior, definimos como pastoral de ecumenismo; e por fim trata, no capítulo quinto, da cooperação entre os cristãos.

Apesar de publicado no ano de 1993 o novo diretório chamava a atenção para a novidade do tema ecumenismo, que achamos interessante destacar: As situações de que o ecumenismo se ocupa não têm muitas vezes precedentes, variando de lugar para lugar e de época para época[17]. Assim o decreto reafirmava um ponto que havíamos destacado: a importância de estudos sobre o ecumenismo, pelo simples fato de ele ser muito pouco conhecido. Outro ponto a se destacar é o papel dos leigos:

 

Dada a importância do papel dos leigos na Igreja e na sociedade, os leigos responsáveis pela ação ecumênica devem ser encorajados a desenvolver contatos e permutas com as outras Igrejas e Comunidades Eclesiais, seguindo as normas deste Diretório[18].

 

Em resumo: o ecumenismo para ser bem compreendido necessita de especialistas sobre o assunto, estudiosos, teólogos, historiadores da Igreja. Ainda há um longo e tortuoso caminho a ser percorrido!

 

Escrevo estas densas linhas no domingo de ramos de 2021. Abre-se a Semana Santa, a mais importante do ano para todos os cristãos, onde reviveremos aqueles dias tensos onde Jesus, por plena e total entrega de amor, morreu na Cruz e redimiu os nossos pecados.

Não podemos seguir indiferentes!

Que a sobriedade e a prudência, mais que palavras de ordem e espírito de cruzada, orientem os cristãos pelo restante deste séc. XXI!



[1] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 01.

[2] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 01.

[3] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 03.

[4] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 08.

[5] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 08.

[6] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 15.

[7] Decreto Unitatis Redintegratio, No. 19.

[8] Cf. ‘Diretório Universal’, in: Coleção Documentos Pontifícios N°167. Petrópolis, Vozes. 1967.

[9] Diretório ecumênico, Parte I, No. 3.

[10] Diretório ecumênico, Parte I, No. 4.

[11] Diretório ecumênico, Parte I, No. 21.

[12] Diretório ecumênico, Parte I, No. 34.

[13] Cf. SEDOC - Junho de 1970. Petrópolis, Vozes. pp. 1503-1530.

[14] Spiritus Domini, Cap. I, No. 02, in: SEDOC - Junho de 1970. Petrópolis, Vozes. pp. 1503-1530.

[15] Spiritus Domini, Cap. I, No. 03, in: SEDOC - Junho de 1970. Petrópolis, Vozes. pp. 1503-1530.

[16] Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo. São Paulo. Paulinas. 1994.

[17] Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo. No. 30.

[18] Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo. No. 86.

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