Semana passada eu tratei das origens
históricas do ecumenismo a partir do protestantismo (Cf.: https://teologiadahistoriabrasil.blogspot.com/2021/03/ecumenismo-origens-parte-01-de-onde.html).
Hoje quero tratar dos inícios do ecumenismo
católico, assunto dos mais candentes e interessantes para todos à luz dos
acontecimentos recentes envolvendo a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021
e o intenso debate que tem ocorrido nos ambientes eclesiais.
O ecumenismo não nasceu com o formato
com que o conhecemos atualmente. Penso aqui nas imagens bonitas com que o papa
Francisco visitou o Iraque em plena pandemia do coronavírus munido de coragem e
zelo pastoral. Para o papado romano chegar a abraçar os muçulmanos com o papa
fez dias atrás, um longo caminho foi percorrido. Vamos a ele com coragem e paciência
na leitura!
O Concílio
de Trento (1545-1563) marcou uma nova era dentro da Igreja, a ponto de todo
o período posterior ser denominado de Tridentino, em uma clara referência a
este concílio que precisou o papel da Igreja no nascente mundo moderno,
principalmente com relação às Igrejas nascidas da Reforma Protestante. A partir
dos fins do século XVIII a Igreja sofreu uma nova reformulação, desta vez para
combater o espírito iluminista e revolucionário. Essa crise seria combatida por
Pio IX (1846-1878). Como principal medida desse pontificado, os historiadores
destacam a celebração do Concílio Vaticano I (1869-1870) e a aprovação
do documento Pastor Aeternus, que definiu o dogma da Infalibilidade
Pontifícia. Um teólogo brasileiro assim citou o trecho principal do documento:
Pondera
o Concílio [Vaticano I] que, para conservar o episcopado uno e indiviso e
manter a coesão e união íntima dos sacerdotes com a multidão dos crentes na
unidade da mesma fé e comunhão, o Eterno Pastor [Pastor aeternus], antepondo
são Pedro aos demais Apóstolos, pôs nele o princípio perpétuo e o fundamento
visível desta unidade.
(KLOPPENBURG, Frei
Boaventura. OFM. Minha Igreja. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 122.)
É
preciso lembrar uma iniciativa que ocorreu durante a preparação do Concílio, que
foi o convite que Pio IX estendeu aos integrantes das demais confissões cristãs.
Pio
IX queria que o seu concílio fosse plenamente ecumênico. Dirigiu um convite
oficial aos bispos cismáticos de rito oriental, para que comparecessem e
assistissem “tal como os seus predecessores tinham vindo ao segundo Concílio de
Lyon e ao Concílio de Florença”; e até aos protestantes de todas as obediências
enviou uma carta paternal, propondo-lhes explicitamente que retomassem contacto
com Roma por essa ocasião. A verdade é que esses apelos não foram ouvidos. Os
bispos orientais, com apenas quatro exceções, rejeitaram o convite com desdém.
Quanto aos protestantes, a atitude foi mais matizada, mas, no fim das contas,
também ela negativa.
(DANIEL
ROPS. A Igrejas das revoluções I: diante de novos destinos. Trad.
Henrique Ruas. São Paulo: Quadrante, 2003, p. 459.)
Para
os cristãos de outras denominações, o simples fato de ser um evento que
dependia do pedido do Papa para ocorrer, por si só era considerado motivo para
se declinar o convite. E desse modo somente noventa anos depois, com o Vaticano
II, veríamos não católicos assistindo a cerimônias oficiais da Igreja Católica
dentro do Vaticano.
Uma
consequência desses séculos todos de embates foi o surgimento do estereótipo de
que a Igreja Católica procuraria sempre manter uma postura de afastamento com
os não católicos, o que não é exatamente uma verdade, já que diversos
pontífices alimentaram linhas de pensamento favoráveis a uma postura mais
aberta ao mundo moderno, e consequentemente ao ecumenismo, como passaremos a
tratar a partir de agora.
Leão
XIII produziu a encíclica Satis Cognitum (1896). Ciente da descontinuidade
causada pelo encerramento do Concílio Vaticano I [encerrado devido a eclosão da
Guerra Franco-Prussiana (1870) e a saída dos bispos franceses do
concílio juntamente com as tropas francesas que ocupavam os Estados da
Igreja e protegiam o papado da invasão das tropas do Piemonte-Sardenha e de
Giuseppe Garibaldi], o objetivo primordial do documento era desenvolver pontos
de discussão que não haviam sido suficientemente esclarecidos, em particular a
questão do papel dos bispos dentro da Igreja Católica. Além disso, ao procurar
precisar o papel dos fiéis dentro da Igreja, lembrava que a Igreja Católica era
a plena detentora da mensagem transmitida por Cristo, e que era seu dever que os
cristãos de outras confissões voltassem ao redil de Cristo:
Sabeis
bastante que uma parte considerável dos nossos pensamentos e preocupações é
dirigida para este fito: esforçar-nos para reconduzir os transviados ao redil
governado pelo Supremo Pastor das almas, Jesus Cristo. (Leão XIII. Satis Cognitum, 1.
Petrópolis: Vozes, 1951).
Apesar
do tom pouco conciliador, este documento foi importante por identificar claramente
a Igreja Católica frente às demais confissões cristãs. A importância vinha do fato
de que qualquer conversação ecumênica deveria ser precedida com um esforço
de se conhecer sua própria identidade. Nesse sentido, a encíclica Satis
Cognitum prestou um inusitado e importante serviço à causa ecumênica. Mesmo
assim havia momentos no documento em que Leão XIII já apontava para uma linha
mais aberta e tolerante:
[...]
está na missão de Cristo redimir da morte e salvar “o que perecera”, isto é, não
somente algumas nações ou algumas cidades, senão a universalidade do gênero humano
todo, sem distinção alguma nem no espaço nem no tempo.
(Leão XIII. Satis
Cognitum, 8. Petrópolis: Vozes, 1951).
Leão
XIII, coerente com a doutrina católica, defendia a conversão ao catolicismo.
Anos
depois Pio XI publicou a encíclica Mortalium Animos (1928) que permaneceu
como um marco nas relações entre a Igreja Católica anterior ao Vaticano II e as
Confissões Cristãs. [Vale lembrar que nesse momento o movimento ecumênico contava
apenas dezoito anos, tendo sido iniciado formalmente em 1910]. Pio XI defendia
claramente que:
Há
apenas um modo pelo qual a unidade dos cristãos pode ser promovida: trabalhar
pelo retorno à única igreja verdadeira de Cristo daqueles que dela se separaram,
pois foi desta única igreja verdadeira que eles se separaram no passado.
(Pio
XI. ‘Mortalium animos’, in: OUTLER, Albert C. Para que o mundo creia. São
Paulo: Imprensa Metodista, 1973, p. 122).
Para
Pio XI as concepções teológicas e propostas de unidade do Movimento Ecumênico
eram incompatíveis com a ortodoxia católica, daí a condenação sistemática do
ecumenismo. Para o papa os “pan-cristãos” falavam de um espírito que não era o Espírito
Santo, mas um espírito de morte [Mortalium animos] que levaria à
descaracterização da mensagem cristã, justificando assim o nome do documento.
Era
nesse momento de ebulição dentro dos ambientes ecumênicos que Pio XII produziu
dois documentos que faziam referência ao ecumenismo. A encíclica Mystici Corporis
Christi (1943) sobre o corpo místico de Cristo reafirmou a doutrina da Unidade
da Igreja:
Como
membros da Igreja contam-se realmente só aqueles que receberam o lavacro da
regeneração e professam a verdadeira fé, nem se separaram voluntariamente do
organismo do Corpo, ou não foram dele cortados pela legítima autoridade em
razão de culpas gravíssimas.
(Pio XII. Mystici
Corporis Christi. 2ª
Edição. Petrópolis: Vozes, 1950, N°20).
Pela
via negativa, podemos dizer que aqueles que não propositalmente abandonaram a
Igreja Católica não podem ser automaticamente condenados como podemos deduzir
do trecho abaixo:
Mas
se desejamos que sem interrupção subam até Deus as orações de todo o Corpo
Místico implorando que os errantes entrem quanto antes no único redil de Jesus
Cristo, declaramos contudo ser absolutamente necessário que eles o façam espontaneamente
e livremente, pois que ninguém crê, senão por vontade. [...] Por conseguinte se
alguns que não creem são realmente forçados a entrar nos templos, a aproximar-se
do altar e a receber os sacramentos, não se fazem verdadeiros cristãos.
(Pio XII. Mystici
Corporis Christi. 2ª
Edição. Petrópolis: Vozes, 1950, N°104).
Já Humani
Generis (1950), produzida para combater o Modernismo, não tratava diretamente
sobre ecumenismo mas havia trechos em que colocava sob suspeita o movimento
ecumênico:
[...]
não julguem, levados por um falso irenismo, que se possa obter o suspirado
retorno dos dissidentes e dos errantes ao seio da Igreja se não se lhes ensina,
sinceramente, sem nenhuma diminuição, toda a verdade professada pela Igreja. (Pio XII. Humani Generis, 42).
Pio
XII alertava sobre os perigos do ecumenismo fácil que prometia restaurar em poucas
décadas a separação de séculos.
Podemos
dizer que a Igreja Católica alternava momentos de maior e menor abertura para o
ecumenismo, indo por terra a ideia de que a Igreja Católica estava completamente
fechada para o diálogo até a celebração do Concílio Vaticano II.
Em resumo, podemos dizer que:
a) Até os anos cinquenta do século XX o papado romano via
com suspeição o movimento ecumênico, embora algumas ideias essenciais para o início
dos diálogos ecumênicos já tinham sido plantadas, a saber:
a.1) A doutrina
católica deve ser apresentada com clareza, sem exageros nem omissões;
a.2) Os atuais
fiéis das Igrejas protestantes estão eximidos da culpa pela separação,
afirmação importante que permite a aproximação e o diálogo.
De qualquer modo, a mensagem geral que
ficava era a de que o ecumenismo deveria levar a volta ao catolicismo romano e
a obediência ao papado. Essa atitude era explicada pelo espírito de animosidade
contra o catolicismo e a concepção da teologia do ecumenismo, naquele momento
incompatível com a doutrina católica.
Mas como veremos nas postagens
seguintes essa recusa ao diálogo ecumênico iria mudar para uma abertura sem
precedentes.
O restante deixemos para outro dia.
Exagerei aqui e o meu leitor já deve estar extenuado lendo tantas citações e comentários...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.